Feitiços dentro dos parques

Viver é jogar com a vida, e esse jogo começa assim que os gametas se fundem e então surge o zigoto, que é o nosso estágio inicial de vida. E, nesse jogo, altaneiro leitor, a vida sempre tem, no final, a carta mais forte. Não batemos na porta da vida e pedimos para entrar. Entramos e saímos sem querer. Neste último caso, estão de fora “os homens que matam a morte por medo da vida”, como disse Vinicius de Moraes num de seus poemas.

Acho que eu não precisava ter dito o que consta no parágrafo anterior. Vou tentar encontrar uma abordagem que o conecte ao pretendo escrever conforme consta no título. Pois bem. Como sou funcionário municipal do órgão que cuida do meio ambiente, no caso a Amma, ando muito pelos parques de Goiânia, fazendo registros das atividades que os colegas do setor operacional do órgão executam nos parques e áreas verdes da cidade. Nessas idas aos parques aproveito para fotografar plantas e bichos, principalmente passarinhos, os quais dão asas à minha poesia e alargam os meus horizontes.

Esse time da Amma, pode acreditar, joga limpo com a cidade, todos da equipe vestem a camisa 10. É o time que pega no chifre do boi. As palavras não são suas ferramentas de trabalho, mas as mãos, que esvaziam lixeiras, que rastelam, fazem podas de grama e mato, recolhem lixo (inclusive muitos preservativos usados e deixados dentro das matas), que lavam os banheiros, recolhem a titica dos cães (tarefa que os tutores dos bichos não realizam).

Na segunda-feira desta semana, fui ao Parque Valdivino Miguel de Souza, no Setor Recanto das Minas Gerais. Antes da criação do parque, o local era, digamos assim, uma latrina coletiva. Era lixo e mais lixo. A Comurg retirava, e os porcalhões entupiam o local novamente. Além da constante fedentina do lixo, havia ainda o mau dos animais descartados por lá. O último descartado por lá, segundo o relato de um morador, foi um cachorro pastor-alemão. Certamente foi um cão dócil, mas que não teve um destino digno. Vestiram um saco de lixo preto na sua parte dianteira e assim o poupou da exposição de sua “cara”. Putz! Que estupidez!

Encontrei dois feitiços no parque, ambos no tronco de duas árvores. E feitiço, como bem sabemos, tem uma finalidade. Se isso tem efeito prático, não sei. Na verdade, eu particularmente não ponho fé. Esta nos impede do “emprego mais digno que cabe dar a nossas faculdades mentais”, como consta em “Ensaios”, do guru Michel de Montaigne (28/2/1533 – 13/9/1592); obra, conforme disse, acertadamente, o jornalista Euler de França Belém, realmente “é uma belíssima bússola intelectual”. Enfim, deixaram a sujeira do feitiço por lá: farofa, pimentas vermelhas grandes, pedaços de maçã, bagos de uvas…

Algum tempo atrás fiquei assustado ao caminhar dentro do Jardim Botânico. Havia um grupo de estudantes de uma escola municipal realizando um passeio peripatético por lá, e os alunos foram acompanhados pelos educadores ambientais da Amma, que percorriam o parque e assim ministrando aos estudantes ensinamentos de botânica e fauna. Encontrei, no tronco de uma paineira, árvore também conhecida como barriguda, uma língua de boi pregada com cinco pregos. Fui ao Google ver a finalidade da tal mandinga e encontrei que seu objetivo é amaldiçoar os fofoqueiros.

Houve uma coincidência: na noite daquele mesmo dia, reassistindo ao filme “O Advogado do Diabo”, me deparei com uma cena de um feiticeiro pregando uma língua de um bicho (acho que de algum caprino) para conter a fala de um promotor de justiça na hora do julgamento. Batata. Ele acabou não conseguindo mostrar os carrapatos da capivara do acusado: começou a tossir incessantemente, e o réu, um grande empresário, acabou, portanto, escapando do assassinato doloso da esposa. O filme é de 1997, e o ator Al Pacino viveu o papel de John Milton, que era o diabo. No final da película, o diabo disse que “a vaidade era o seu pecado predileto”.

Em Eclesiastes 1, consta que “tudo é vaidade”. Só que o excesso dela não é uma alternativa apropriada em nosso jogo com a vida. Eis-me voltando ao primeiro parágrafo. Há uma recomendação preciosa em Provérbios16. Segundo o livro, é “melhor ser humilde de espírito com os mansos do que repartir o despojo com os soberbos”. Montaigne também falou de sua opção pela vida simples. Ele inclusive diz que “a vaidade incita-nos por demais a ter boa opinião sobre nós mesmos”. É aí que o diabo entra e faz festa funesta.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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