São Vargas Llosa

Com a morte de Mario Vargas Llosa começou a sua santificação. 

”Un Príncipe de los Ingenios contemporáneo” no La Nación da Argentina. “Último membro de uma geração dourada da literatura latino-americana”, na DW Brasil. “Com sua morte, encerra-se um dos capítulos mais marcantes da literatura latino-americana do século XX — e também um ciclo de intensa participação intelectual, política e cultural”.  Até mesmo a Fundação Gabo: “A Fundação Gabo lamenta a morte de Mario Vargas Llosa, mestre da narrativa em espanhol”. No Libération: “Monumento da literatura sul-americana”,

Mas devagar com o andor. Mario Vargas Llosa não era são no sentido de santo, nem era são no sentido de saudável, para o que escrevia. Ainda que, num exercício de boa vontade, excluamos os seus textos de defesa da extrema direita, de apoiador de Bolsonaro (uma boa vontade já se vê com extremo sacrifício), ainda sobra o que escreveu em romances nos últimos tempos. Da memória e de arquivos publicados retiro o que se segue.

Há um pensamento que aparenta ser dialético quando expressa que indivíduos reacionários, até mesmo de direita, podem ser bons ou ótimos escritores. No passo seguinte, falam que escritores de esquerda nem sempre são bons escritores. Esse é um passo necessário para a afirmação a seguir, “escritores de esquerda são panfletários”. E porque escrevem panfletos, longe estariam da boa literatura. Não vem nem ao caso aqui lembrar da ótima literatura, panfletária, de Swift – que recomendava aos pais pobres a venda dos filhinhos aos ricos, para que as crianças fossem comidas assadas – ou de Mark Twain que matou a hipocrisia dos super-honestos na novela “O homem que corrompeu Hadleyburg”, Não, porque devo continuar. Isto é, com a base sólida de que literatura não é panfleto de esquerda, partem para a insinuação de que os escritores reacionários escreveriam magníficos romances!

Por outro lado, ou do mesmo lado, temos Lima Barreto e Castro Alves, escritores de esquerda dignos de qualquer literatura do mundo. E de modo mais recente, o fecundo Graciliano Ramos. Onde então estaria a “dialética” do cidadão reacionário, mas escritor de gênio? Quando saímos do Brasil, bem podemos ir ao ponto máximo onde se encontra Leon Tolstói. Esse russo realizou uma obra-prima, ou melhor, obras-primas, todas movidas por um profundo amor ao camponês, e com o próprio espírito de ideias anarquistas na sua vida. Onde estaria a “dialética” que apenas vê o ponto do latifundiário da pessoa do escritor e conde Tolstói?

Isso posto, vamos a Mario Vargas Llosa

Eu já havia notado que pelo menos em A Guerra do Fim do Mundo Mario Vargas Llosa havia sido um portentoso fracasso ao cometer um livro falho, indigno de um criador um pouquinho acima da média, porque não se sustentava em vários níveis: a) pela criação mesma de personagens – e um deles era nada mais, nada menos, que Antonio Conselheiro; b) pela desproporção de abismo entre a dimensão humana/política de Canudos e o livrinho realizado; c) pelo cotejo inevitável com a obra-prima Os Sertões, o de Llosa e o de Euclides eram dois mundos estranhos, antagônicos, repelentes recíprocos.

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Mas o passado na literatura é um infindável presente. Nela não há jornal velho ou produto com a validade vencida. Se nos perdoam os norte-americanos, na literatura há uma eternidade muito acima da dos diamantes, pois em vez de pedras a humanidade é que brilha. E se perdoam o passo, passagem e queda, queremos dizer, aquele passado ruim, precário e pretensioso de Mario Vargas Llosa torna a voltar em Tia Júlia e o escrevinhador. Então digamos, isto é presente.

Para o caso de Tia Júlia, pouco importa se o narrado se atribua a um autor de radionovela, Pedro Camacho, louco de frases sonoras e de extravagâncias, ou a um escritor cujas recordações se confundem com as do tido como o Magnífico Mario Vargas Llosa. Importa o conjunto, a forma da argamassa geral do livro, e o sentimento de dó, constrangimento que causa até nos olhos de quem desejava apenas se entreter, mas sem rebaixar a própria inteligência. Pois o que diria um leitor diante desta literatura cuja eternidade está mais para diamantes que para a humanidade?

“Demorou para pegar no sono e, quando pegou, começou imediatamente a sonhar com o negro. Via-o cercado de leões e cobras vermelhas, verdes e azuis, no coração da Abissínia, de cartola, botas e uma varinha de domador. As feras faziam graças ao compasso de sua varinha e uma multidão espalhada pelas moitas, troncos e galhos alegrados pelos cantos dos pássaros e o chiar dos macacos, o aplaudia loucamente”. Dirá no mínimo que estamos ante um mau escritor, que divaga para expressar o mundo dos sonhos sem entrar na pele do personagem. E pior, que neste romance não há uma seleção de fatos, que são substituídos por amontoados descritivos. Mas o trecho é de Pedro Camacho, ruim e extravagante de ruim de propósito. Então vamos ao próprio escritor.

Além da falta de seleção de pessoas e circunstâncias, com narração sonolenta, em um relato de paixões e carnalidade quase não há sexo, ou o que seria mais humanamente literário, de promessa de sexo entre belos e saudáveis primos que se contam segredos, por exemplo. Em um trecho, o narrador fala a sua prima, e dela faz uma confidente amorosa. São dois jovens que se falam de amor e paixão, sem que se envolvam na chama.

A isso caberia só uma anotação ao lado: absurdo! O autor relata como um burocrata, ele conta sem que se reflita nos personagens o que ele conta do que fazem. Em romance, ou melhor, em arte, isso é grave. Ele descreve fatos, não narra gente. O reflexo do acontecimento na pessoa navega ao largo. Aquilo que aprendemos em desenho, ou em imagens do bom e velho cinema, de que a sombra do personagem, em momentos dramáticos, é mais humana que a pessoa, e nem precisaríamos ir a Eisenstein, pois nos basta o que o genial Kafka ensina quando elude o prosaísmo que é o simples contar fatos, esqueçam.

Em “Tia Júlia e o escrevinhador”, Mario Vargas Llosa vence o escândalo, os traumas, a tempestade, a inexperiência do personagem adolescente, pelo que conta em suas linhas. “O casamento com tia Júlia foi realmente um sucesso e durou bem mais do que todos os parentes e até ela mesma tinham temido, desejado ou prognosticado: oito anos”. Que sucesso! O narrador venceu todas as dificuldades. Em Tia Júlia e o escrevinhador, Mario Vargas Llosa perdeu apenas o mais essencial para um escritor: a construção e a responsabilidade da arte de narrar.

Esse é o escritor Mario Vargas Llosa, que coincidiu os seus anos de reacionarismo com a decadência artística. Mas pode ser que tudo seja só uma coincidência. Ou talvez uma nova dialética da natureza. 

Devagar como andor que o santo é de barro. 

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