A brutalidade do capitalismo: aqui e agora

Halley Margon

Para a Zezé – in memoriam.

I

Foi preciso me afastar para, no regresso ao berço, ver de novo a dramaticidade da cena. Suponho que em quase uma década o país tenha acumulado mais riqueza e que os ricos tenham se tornado ainda mais ricos, mesmo e principalmente quando já eram demasiadamente ricos. Nada de muito novo, já vinha acontecendo antes.

Não sei e nem me interessa agora saber a evolução do PIB, o coeficiente de Gini ou qualquer outro indicador utilizado pelos economistas para dimensionar o tamanho da riqueza nacional ou visualizar sua arquitetura.

O que importa falar agora e aqui é do que os olhos podem ver. Das cidades que eram pequenas e se tornaram médias, das médias que se fizeram grandes, e das grandes que, sem conseguir e sem querer conter a face feia das metrópoles controladas pelas demandas do capital, se tornaram mastodônticas. Em boa parte delas, a reprodução em cadeia dos condomínios de luxo, onde os de cima fingem não existir, para além dos muros que os protegem, a pobreza e a miséria no mundo que os cerca – da mesma maneira como a família do comandante de Auschwitz ignorava o fedor dos fornos crematórios como se não estivessem ali, a poucos metros de distância da piscina onde seus filhos se divertiam durante o verão polonês. Em todas elas, o afastamento dos não proprietários para os subúrbios sempre mais distantes.

Um dos resultados desse fenômeno é o aumento indireto das horas trabalhadas – alguns de nós já terão eventualmente medido o tempo de deslocamento da empregada doméstica, agora chamada auxiliar, secretária ou colaboradora pelos ditames do politicamente correto?

Pode-se dizer sem medo de errar que na maioria dos casos esse tempo não será nunca inferior a pelo menos umas quatro horas diárias. Conhecedores que somos da qualidade do transporte coletivo nas grandes cidades será preciso ser cínico para afirmar que são horas de descanso após a labuta diária. Porque não são, de nenhum modo o são. Esse ir e vir é, muito provavelmente, tão ou mais cansativo que a própria jornada de trabalho.

Se, em algum momento, a distância entre o enriquecimento de uma parcela da população se reduziu, de novo ela parece ter aumentado.

Pintura de Lagar Segall

O retorno, portanto, esse retorno que por enquanto se restringe à experiência sensível, dói tanto quanto uma navalhada na esperança. A feiura agride os olhos porque está esparramada pelas ruas das cidades como monturos a céu aberto, menos nas zonas destinadas aos ricos, é claro. Genuína fotografia da brutalização.

A miséria, a tristeza, a desesperança grudada nos olhos dos miseráveis que mendigam nos semáforos, ou onde quer que seja, insistindo em perturbar nosso conforto, ou a do mais subalterno dos peões da construção civil são sempre as mesmas.

Estamos condenados a presenciar essa cena eternamente? Ela nunca vai desaparecer? No extremo oposto, a ostentação ególatra dos ricos, animados em expor nas ruas por onde passam a luxúria do próprio sucesso.

E, logo, a estupidez das seitas religiosas pronta a capturar a frustração que se esparrama como um rio sem margens. Nelas, os escanteados da prosperidade oram a um deus cujo sarcasmo parece ser, para eles mesmos, a um só tempo infinito e invisível. E seguem crendo, a fé intensificada a cada gole de impotência. As cidades seguem crescendo como se fossem um corpo uno, a prosperidade fosse de todos e os espaços destinados ao privilégio ao mesmo tempo a negação e a confirmação desse mundo distorcido. Pouco menos de uma década e esse corpo apenas se fez mais deformado. São brutos também, e quem sabe se não sobretudo, os bem-sucedidos, rudimentares em gestos, pensamentos e ações, públicas ou privadas – tanto quanto aqueles que na rabeira do monstrengo podem apenas aspirar a ascensão até o topo da cadeia.

II

Os brutos têm seus modos próprios, como todos nós, os outros e os supostamente outros. Venham de onde vierem, sejam quais forem suas origens, eles se identificam com aqueles com os quais se assemelham e, tais quais os animais selvagens (os lobos, por exemplo), sempre que podem se aglomeram para formar bandos e atacar. Têm fome de expansão e de sangue. Precisam se tonificar a cada mamada, expandir seu território e a força do próprio bando. Não importa se saídos das melhores escolas da elite política e econômica, ou dos ventres onde são paridos os mais talentosos dos comerciantes. Há épocas em que tentam dissimular sua natureza e se escondem entre os mansos – os outros e os supostamente outros. Mas não agora. Eles agora definitivamente decidiram vir a público para declarar seu inalienável direito à hegemonia do planeta. Eles se tornaram os novos donos do mundo, sejam poderosos ou não, daí que sua brutalidade adquire uma nova verve.

III

Quase nada funciona como poderia e deveria funcionar, ou funciona precariamente. As leis de trânsito parecem estar sendo escritas ali mesmo, no tumulto da circulação. As ruas da cidade que celebra o brilho do enriquecimento rápido são, paradoxalmente, malcuidadas, escuras, sujas, esburacadas – lá onde está e existe o público.

O que surge como irretocável é a acumulação de riquezas. Em umas tantas pequenas e médias cidades do interior, o número de milionários é tão espantoso quanto às vezes o tamanho da fortuna de alguns deles – e a pequenez dessas cidades apenas torna mais evidente o gigantismo da desproporção. (A dimensão das riquezas produzidas pelo agronegócio é quase inimaginável se vista à distância.) É assim que a renegada cara do terceiro mundismo, do qual se pretende fugir como se fosse parte do Index Librorum Prohibitorum, reaparece com a energia de uma alucinação – as escapadelas para Miami ou para o interior dos condomínios de luxo não são suficientes para melhorar a fotografia. O ser deformado e doentio investe contra a máscara que pretende mantê-lo escondido.

IV

Parece ser uma espécie de autismo, essa incapacidade de olhar para fora e ver o outro. Ir ao estrangeiro e não enxergar a exorbitância das nossas iniquidades – que ninguém pense que o estrangeiro é o paraíso, ao contrário, a natureza do negócio é praticamente a mesma.

Aqui, no entanto, uma inaptidão secular destrói a possibilidade de construir parâmetros, fazer comparações e mudar, uma inapetência que é, além disso, muito conveniente para o modelo de acumulação do país. Seguimos eternamente satisfeitos e esperançosos, encantados com a riqueza rápida (e bruta) e com a promessa de enriquecimento para todos – ou quase todos. De modo que aqui estamos, enfeitiçados no meio do atoleiro.

Essa desigualdade indecente é nossa, fruto de um padrão de acumulação relativamente sui generis (e nosso), mas quem se importa? O paraíso é para todos, entoam os fiéis, enquanto miram deslumbrados a ostentação dos muito ricos.

V

Os carros não cabem mais nas já avantajadas garagens das casas. Os armários já não comportam as roupas e adereços amontoados por meninas mal saídas da adolescência. Para elas um único closet não basta mais. O acúmulo de necessidades inventadas a toque de caixa cobra a existência de quartos de apoio ou algo que o valha. Antes sequer de atingir a maturidade legal já possuem sapatos em quantidade suficiente para encher de inveja a defunta Imelda Marcos. Tudo é excesso e desnecessidade, capricho de principezinhos intocáveis. Seus inadiáveis desejos e apetites mascaram a verdadeira pulsão que os alimenta: a máquina que força a produção desenfreada de mercadorias.

VI

A tentativa de escapar da pobreza pela via da ascensão pessoal traz acoplada a necessidade de atropelar qualquer desejo comum, qualquer traço de civilidade e sensatez. E enquanto o sujeito se esforça para subir não se importa de adotar, com autêntico fervor religioso, as mesmas regras que o colocaram à margem dos ganhos produzidos pela sociedade – é quando a ideologia dos privilegiados, adotada por ele, adquire um plus de perversidade. Vale literalmente tudo para escalar a montanha. É difícil distinguir o que nesse universo de desencontros é mais aterrorizante, se a brutalidade dos ricos ou a rudeza dos que querem a todo custo deixar para trás as iniquidades da máquina, se a indecência de uns ou a torpeza de outros.

Halley Margon, escritor, é colaborador do Jornal Opção. É autor dos livros “Paisagem Com Cavalo”, “A Noite Belga” (publicado também na Espanha) e “Derivações de Ana”.

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