Contistas escrevem sobre a própria morte. Conto 1 — De Solemar Oliveira

A Madona Sistina

Solemar Oliveira

Especial para o Jornal Opção

Eu nunca tinha observado com atenção o rosto da Virgem de Rafael, a Madona Sistina, até ficar frente a frente com ele no museu. Fiquei obcecado. Réplicas, fotos, posts, cópias em quadros, imagens virtuais, tudo me movia para a contemplação contínua e sequencial daqueles olhos intensos, ensimesmados, doentes de amor pelo vazio e profundamente observadores. Ela me olhava do alto de seu cansaço. O menino pesado, muito maior que um bebê de colo, repousava confortável junto à mãe, pensando sobre sua missão e na necessidade de nunca mais deixar o calor que emanava gratuito. Como eu, agora, que olho sua face com a intenção de me abastecer de proteção. Ela é como minha mulher, mas com algo a mais de místico e sobrenatural. Humanos não são assim. A Virgem é uma força da natureza, uma descoberta de Rafael, do pintor, uma potência de Hoffmann e seu mosteiro.

Observei que a Madona, entristecida, de fato, contempla os santos na Terra, ao redor, ao longe, aqueles que solicitam sua intercessão, já que ela carrega o Salvador no colo. Desses santos, em particular, ela vela por aqueles que sabem de sua própria morte, conhecem os detalhes e a narram. Como é o caso de São Pio de Pietrelcina, o Padre Pio, São Francisco de Assis ou, ainda, Santa Teresa de Ávila. Ela vela por mim, que conheço exatamente minha morte, como uma irmã de muito tempo, que me segura a mão e conforta. Nisso tenho alguma experiência. Mas, por uma questão de entendimento, preciso dizer que os santos que previram a própria morte foram dotados de uma clarividência – poder muito raro, se acreditarmos que existe –, para alcançarem uma visão tão precisa, como um filme projetado numa tela, a despeito de toda impossibilidade imposta pela ciência.

E é ainda muito claro que as maneiras de narrar a própria morte, observada pela Madona com profundo alento e piedade, sem a comiseração dos comuns, como eu, podem se dar de muitas formas. A literatura nos provou essa possibilidade. Brás Cubas morreu primeiro para contar depois, ao contrário dos santos. O motivo da morte? Qualquer um, uma vez que o sobrenatural é o caminho para a descrição desse feito. Os santos, não. Morreram de amor, assim como eu. Quase adiantei a guinada do evento. Desculpe.

Madona Sistina, de Rafael Sanzio | Foto: reprodução

Retornando à Madona, minha atenção em seu olhar crescia à medida que eu a observava e comparava sua aflição com a da minha mulher. A evolução de nossos laços ocasionou um fenômeno raro. À medida que nos ligávamos fisicamente, os espíritos sentiam o desconsolo da perda da potência com o advento da nova idade – a dos velhos – e ficávamos cada vez mais temerosos. Seu olhar era pura tristeza diante da expectativa da perda e, acredito, foi isso que me tornou obcecado pela Santa. Queria que ela, mulher maior em todos os sentidos, capaz de amar da forma mais apurada existente, intercedesse por mim diante da fraqueza dos anos e me devolvesse as características do jovem que fui um dia. O que consegui com isso foi, como os santos, a capacidade de narrar minha própria decrepitude e morte.

A doçura da Santa fez-se presente como a companheira espectral, dupla, inconveniente, que me assombrou dali em diante, até que meus dias se extinguiram no crepúsculo do derradeiro suspiro.

Já é hora de dizer que, se não sou um profeta do fim dos meus tempos, capaz de prever minha própria morte, como os santos – Pio ou Teresa –, sou um espectro que escreve sobre seu próprio infortúnio. Dito isso, é fácil perceber que morri e que agora contemplo, do alto etéreo, minha vida vivida no ermo do amor e que, por causa dele, sucumbi antes da hora. Ou, corrijo: desisti de viver para nele tornar-me purificado.

A Madona pode ter aprovado. Daqui vejo o seu encanto, enquanto as imagens, como num filme projetado, passam no anteparo do terreno antigo. Minha mulher vive e se esquece de que vivi um dia. Paira sobre ela um esforço para manter-se minha, coisa que desejou por muito tempo e me convenceu. Às vezes, esvai-se em novos pensamentos e, por conta do costume, desiste. Sou eu que ainda desejo, de onde estou.

Daqui posso contar que, em lágrimas, percorri o olhar da Madona Sistina, a criação de Rafael, que a viu em alguma projeção astral de sua mente genial e, com ela, selou meu destino. Posso contar que, no último suspiro de amor, em meu leito doméstico, senti que o coração batia num ritmo lento, remoendo a vontade de parar e, sem aviso prévio, cessou sua tarefa mecânica, inconsciente e árdua.

Meu coração parou de amores: pela mulher da minha vida, pela Virgem, pelos santos.

Solemar Oliveira é escritor.

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