Livro mostra a conexão do Grupo Folha, que edita a Folha de S. Paulo, com a ditadura militar

Sob o comando de Octavio Frias Oliveira, a “Folha de S. Paulo” e a “Folha de Tarde” apoiaram a ditadura militar. Parece que ninguém diz o contrário.

Entre as décadas de 1970 e 1980, a partir da ascensão de Otavio Frias Filho, o herdeiro talentoso da família — cujo mestre inspirador foi o notável editor Claudio Abramo —, a “Folha” praticamente deixou de apoiar a ditadura que era tanto de militares quanto de civis. Era uma ditadura civil-militar.

Quanto retiram o componente civil, insistindo no seu caráter “apenas” militar, o objetivo é sugerir que era, por assim dizer, “monstruosa”. Mesmo com os civis participando, dando-lhe feições institucional, fazendária e política, jamais deixou de ser autoritária e, entre os governos dos generais Arthur da Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici, roçou ao totalitário.

Não há ditadura boa. Não há ditadura mais ou menos. Todas as ditaduras são ruins.

Ilustração da Agência Pública

Mas é possível firmar que o governo do general Ernesto Geisel foi mais, digamos, “aberto” do que os de Costa e Silva e Garrastazu Médici. Ainda assim, na gestão de Geisel, um “filho” da Sorbonne militar — a ala moderada do Exército —, presos foram torturados e assassinados em quartéis do Exército.

O jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, e o operário Manuel Fiel Filho não se suicidaram. Foram assassinados por militares. Os dois não estiveram na guerrilha e não ofereciam perigo algum nem aos militares nem à ditadura.

Mas ditaduras são assim mesmo: não têm limite. Seus agentes, quando querem, torturam e matam a bel-prazer. Militares e policiais civis tinham ordens para torturar e matar. Ordens de chefes, quer dizer, de generais e de delegados.

Diretas como detergente do Grupo Folha da Manhã

Retomando a questão da “Folha”. Em 1984, a inteligência e a argúcia de Otavio Frias Filho, Otavinho — uma pena que tenha falecido cedo, com 61 anos, em 2018 —, indicaram que havia um tema que poderia “limpar”, ao menos em parte, a conexão do jornal com a ditadura.

Otavio Frias Filho percebeu, antes dos demais jornais — “O Globo” (pediu desculpas aos leitores, mas a história não perdoa porque, sendo filha da memória, não esquece) e “O Estado de S. Paulo” também apoiaram a ditadura —, que as Diretas Já do deputado federal Dante Oliveira poderia ajudar a “reescrever” a história ao menos da “Folha” (quiçá mais defensável do que a “Folha da Tarde”).

Então, desde o início, a “Folha” deslocou uma grande e qualificada equipe para cobrir os comícios e movimentação dos agentes pró-Diretas Já. Foi um sucesso. Vale sublinhar que a TV Globo foi a primeira a chegar atrasada aos comícios gigantescos.

O apoio às Diretas Já encobriu o apoio à ditadura? Não. Mas “melhorou” a imagem do jornal. Porque, tendo apoiado o governo militar, também apoiou a redemocratização, quer dizer, o fim da ditadura.

Pode não parecer, mas há mérito nisto. A “Folha” colaborou, com seu quinhão, para o fim da ditadura, com o apoio às Diretas Já e, na sequência, o apoio à eleição de Tancredo Neves para presidente da República no Colégio Eleitoral, em 1985, há quarenta anos.

A “Folha” atual, e mesmo desde 1984 (ou até um pouco antes), pode ser avaliada pelo apoio à ditadura? De maneira alguma. A “Folha” defende, há anos, a democracia — com unhas, dentes e cérebro. Trata-se de um excelente jornal — sempre crítico e posicionado. E, como se sabe, não “alisa” ninguém, às vezes até excede no seu ímpeto crítico.

O jornal perdeu um pouco de densidade depois da morte de Otavio Frias Filho e da saída de Janio de Freitas (sua demissão, com mais de 90 anos de idade, mostra a crueldade e mesquinhez de alguns executivos) e Marcelo Coelho (símbolos de inteligência e coerência crítica). Mas continua um jornal de qualidade, sobretudo defensor dos valores democráticos.

Então, o que define a “Folha” não é apenas o apoio à ditadura e tampouco a crítica à ditadura. O que define o jornal é toda a sua história, com altos e baixos, desde sempre. O veículo mudou e se integrou à sociedade democrática — como seu apóstolo, quer dizer, como seu defensor.

Livro de seis pesquisadores qualificados

Na quinta-feira, 27, será lançado o livro “A Serviço da Repressão — Grupo Folha e Violações de Direitos na Ditadura” (Mórula Editorial, 244 páginas).

São vários os autores: Ana Paula Goulart Ribeiro (jornalista e historiadora), Amanda Romanelli (historiadora), André Bonsanto (historiador), Flora Daemon (jornalista), Joëlle Rouchou (jornalista) e Lucas Pedretti (historiador).

São seis profissionais qualificados, ou seja, pesquisadores experimentados. Não são panfletários e, portanto, não querem denegrir o Grupo Folha. Querem, isto sim, revelar o que realmente aconteceu — porque o grupo jornalístico se tornou, digamos assim, uma “peça auxiliar” da ditadura contra a democracia.

De acordo com o repórter Victor Félix, do Portal dos Jornalistas, “ao longo de 244 páginas, a obra analisa temas como o apoio do Grupo Folha [Folha da Manhã] ao regime ditatorial e à repressão, a participação de militares na estrutura do veículo, trabalhadores presos, perseguidos ou demitidos ilegalmente, e outros casos ocorridos na época. O livro é baseado em fontes documentais e depoimentos de testemunhas”.

Não li o livro, portanto não tenho informações precisas. Mas a leituras de outras obras sugerem que a conexão do Grupo Folha com a ditadura realmente é um fato, mas tudo indica que a relação mais próxima com agentes da ditadura se dava noutro jornal da empresa — a extinta “Folha da Tarde”. Fala-se até de um editor-serviçal direto da ditadura.

O Portal dos Jornalistas acrescenta: ‘“A Serviço da Repressão’ mostra como o Grupo Folha se beneficiou e lucrou com o regime militar”, por intermédio “da participação (direta e indireta) de empresas como Lithographica Ypiranga, TV Excelsior, Fundação Cásper Líbero, TV Gazeta e os jornais ‘Última Hora’, ‘Notícias Populares’, Agência Folha, ‘Cidade de Santos’, ‘Folha da Tarde’ e ‘Folha de S. Paulo”.

Menciona-se “o depoimento de um agente da repressão que atuou no DOI-Codi de São Paulo que confirma a participação do Grupo Folha no empréstimo de carros para ações de repressão que teriam resultado no desaparecimento forçado de opositores do regime”.

O Portal dos Jornalistas está correto quando diz que o depoimento do agente “confirma”. Porque a história não é nova. Mas o depoimento do agente é uma novidade.

Hoje há uma história heroica da imprensa brasileira no combate à ditadura. Há quem cultive a história de que o “Estadão”, para contestar a censura, publicava receitas culinárias nos espaços tesourados pelos agentes militares.

Trata-se de uma história até bonita, mas não inteiramente completa. O “Estadão” apoiou o golpe de 1964 e a família Mesquita gostaria que os militares, tendo arrancado os civis do poder, entregasse-o a outro civil, Carlos Lacerda.

Os militares, além de cassarem Carlos Lacerda — vítima de um dos maiores autoenganos da história do país —, decidiram continuar no poder, depois do governo do general Humberto de Alencar Castello Branco. Os generais governaram o país por 21 anos — uma longa e torturante noite.

Os donos dos jornais “Folha de S. Paulo”, “Estadão” e “O Globo” foram colaboracionistas e, como tais, não têm como, apesar das tentativas, “escapar” da história. Tanto que está sendo lançado mais um livro para relatar o que de fato aconteceu.

O que não se deve — pelo menos eu não faço isto — é desmerecer os jornais atuais, os três citados, por causa de seu apoio à ditadura no passado. No momento, nenhum deles apoia a “troca” da democracia por uma nova ditadura. São jornais de excelente qualidade, com equipes de primeira linha. Mas, repetindo, a história não deve — jamais — ser esquecida.

[Leia sobre polêmica entre Ali Kamel e Marcelo Coelho (https://tinyurl.com/5zzrupse).]

O post Livro mostra a conexão do Grupo Folha, que edita a Folha de S. Paulo, com a ditadura militar apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.