Uma sentimentalidade exagerada por cães e gatos

Eu estava zanzando no Parque Botafogo quando a vi. Percebi que estava sem força, e isso certamente em decorrência de sua idade. Tentava se locomover, mas era em vão o seu esforço. Foi justamente a situação de dificuldade por que passava que me fez notá-la. Não tive como fazer alguma coisa a seu favor. Estava fora do meu alcance. E realmente estava. Mais adiante conto o porquê.

Se ela fosse um cachorro ou um gato, certamente apareciam inúmeras pessoas para ajudá-la. Sensibilidade para com cachorros e gatos não falta. Em algumas pessoas, essa sentimentalidade é exagerada, haja vista que bichos para elas são apenas esses dois animais. Isso me lembra um episódio ocorrido no Parque Campininha das Flores. Por lá havia um homem que vivia num canto do parque com quase 40 cães e gatos. Esse fato deve ter uns cinco anos. Enquanto morava sob a ponte da Avenida 24 de Outubro, sobre o córrego Cascavel, em Campinas, não surgiram reclamações contra ele.

O bicho pegou quando buscou o parque como moradia por medo de a ponte desabar sobre ele e seus animais, e isso em decorrência da fedentina da urina e das fezes dos bichos, que ele não recolhia. E, para encaroçar mais o angu, havia ainda as escaramuças entre seus cães com os que eram levados ao parque pelos frequentadores do espaço. No entanto nem todo mundo o apedrejava. Até a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Goiás, entrou no circuito em sua defesa quando a ele foi dado um prazo de alguns dias para desocupar o parque. Um veterinário ia, gratuitamente, ao parque para cuidar de seus animais.

O homem recusou o abrigo da Prefeitura de Goiânia que lhe foi oferecido. Seus animais foram o motivo de sua recusa. Alegou que seus animais eram sua família e que só desocuparia o parque se lhe fosse dado um lugar em que pudesse ficar com seus bichos. Ajuda para a sua alimentação cotidiana não lhe faltava, pois seus animais sensibilizavam as pessoas. Não fossem seus bichos, ele seria apenas um morador de rua entre os milhares que estão por aí sob marquises, praças, parques…

Opa! Deixe-me consertar o termo como recomenda o “politicamente correto”: o certo é “morador em situação de rua”. Dentro do “politicamente correto”, “morador de rua” é uma característica definitiva. Verbalmente, essa definição é linda, porém nada de concreto tem sido feito para que eles saiam das ruas e assim façam jus ao termo apropriado. E cada vez mais as pessoas em situação de rua estão aumentando.

Ele acabou, portanto, ganhando um lote na região do Morro do Mendanha e para lá foi com seus animais. Foi ajudado por um engenheiro civil e assim construiu uma casinha no lote. Veio outro problema: deixou um homem morar em seu lote, mas, depois de algum tempo, pediu que ele saísse do lote. Estava descontente, pois sua casa estava sendo muito frequentada por amigos estranhos da pessoa que abrigou. Disso resultou um bate-boca entre os dois que culminou em sua morte: foi assassinado com um facão. Não sei que destino seus cães e gatos tiveram.

Sobre quem vi no Parque Botafogo, assim que bati os olhos nela, me lembrei do poeta Manoel de Barros. (Manoel é meu manual de passarinhos.) Num poema em que diz que não suporta ser “apenas um sujeito que abre portas, / que puxa válvulas, que olha o relógio, /que compra pão às 6 horas da tarde, / que vai lá fora, / que aponta lápis, / que vê a uva etc. etc.”, ele fala que pensa em “renovar o homem usando borboletas”. Essa fuga da normalidade certamente é o poeta fugindo da caverna dos fracassados, conforme a definição junguiana sobre ser normal. Raul Seixas, na música “Maluco Beleza”, canta que mistura maluquez com lucidez para ficar maluco beleza enquanto muita gente “se esforça para ser um sujeito normal e fazer tudo igual”. Já Belchior, na música “Pequeno perfil de um cidadão comum”, também fala da normalidade em que vive “aquela gente honesta, boa e comovida / que caminha para a morte pensando em viver na vida”.

Poeta Manoel de Barros: “Penso em renovar o homem usando borboletas…” | Foto : Reprodução

Ela estava com as asas em ruína. Voou com sacrifício e pousou num cano de ferro. Ficou ruflando as asas incompletas, talvez sem coragem de se lançar no ar. Enquanto a observava, percebi que a situação daquela borboleta é algo que também pode acontecer com a gente. O tempo passa, nossas asas desintegram, e os voos só passam ficar apenas em nossa vontade. E depois nem isso. Tomara que aquela borboleta tenha voado muito, tenha buscado néctar em muitas flores… Se não o fez, agora não dá mais.

Com as asas desintegrando, a borboleta pousou sobre um cano de ferro com grande dificuldade | Foto: Sinésio Dioliveira

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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