
Três anos após a morte do jornalista britânico e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari, ‘Como salvar a Amazônia’ é lançado por grupo de jornalistas que abraçaram missão de concluir a obra de vida de Dom. Dom em Raposa Serra Do Sol, entrevistando Mariana Tobias, pajé do povo Macuxi
Nicoló Lanfranchi/BBC
Quando o jornalista britânico Dom Phillips conseguiu aprovar seu ambicioso projeto do livro Como Salvar a Amazônia, o subtítulo da obra refletia sua disposição em se embrenhar na floresta atrás de respostas: Perguntem a quem sabe.
Três anos após seu assassinato, o livro enfim foi publicado, mas com um novo subtítulo: Uma busca mortal por respostas.
A obra acaba de ser lançada no Brasil, Reino Unido e Estados Unidos (Bonnier Books/Companhia das Letras) graças a um esforço de um grupo de amigos para concluir o projeto cuja pesquisa culminou com a trágica morte do britânico e do indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, no Amazonas, em 5 de junho de 2022.
Um dos melhores amigos de Dom no Rio, o jornalista Andrew Fishman conta à BBC News Brasil que lidar com o assassinato de Dom, “tão injusto e em sentido”, foi a parte mais difícil para os envolvidos no projeto — “extremamente abalados” com a perda do amigo.
Cofundador do site jornalístico The Intercept Brasil e um dos onze colaboradores do livro, Fishman diz que a visão de Dom norteou o projeto.
O grupo seguiu buscando respostas das pessoas que têm mais intimidade com a floresta e viajando para contar suas histórias — refletindo a convicção de Dom de que é preciso estar nos lugares.
Segundo Fishman, jornalista norte-americano radicado no Rio — onde por muitos anos foi parceiro de stand-up paddle de Dom em Copacabana, antes de o britânico se mudar para Salvador —, o amigo “seguia o que amava, e não o dinheiro, o reconhecimento ou a aventura”.
“Como salvar a Amazônia não é uma afirmação, é um convite para que todo mundo passe a fazer essa pergunta juntos, porque ele sabia que o que acontece na Amazônia afeta o mundo inteiro”, diz Fishman.
Dom no acampamento Dalcídio Jurandir em Eldorado dos Carajás, 2019
João Laet/BBC
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Você era um grande amigo do Dom. O que seu olhar tinha de distinto? Qual era sua marca ao retratar a Amazônia?
Andrew Fishman – Quando Dom morreu, muitas de suas fontes expressaram sua tristeza, reconhecendo seu amor pela Amazônia, seu respeito ao seu povo e o jeito sensível com que abordava assuntos.
Essa é a grande marca do Dom. Ele seguia o que amava, e não o dinheiro, o reconhecimento ou a aventura.
Ele foi para a Amazônia como um repórter, se apaixonou e decidiu dedicar sua carreira à região.
Dom tinha um olhar extremamente rigoroso, ético e comprometido. Amava a Amazônia e queria garantir sua preservação e a vitalidade de suas comunidades.
Não seguia o caminho mais fácil, muito pelo contrário: seguia o que entendia ser o mais importante e correto.
BBC News Brasil – Como salvar a Amazônia. O livro parte dessa colocação ambiciosa — encontra respostas?
Fishman – Dom não tinha intenção de trazer respostas prontas. Queria usar sua plataforma e sua competência como escritor para olhar para a Amazônia e falar com as pessoas que estão tentando promover mudanças com pequenas e grandes ações.
Ele falava tanto com as pessoas que estão devastando quanto com as que estão tentando criar iniciativas inovadoras para impedir a devastação.
O que ele mais falava era sobre as 20 milhões de pessoas que moram na Amazônia. Não se pode simplesmente desligar a atividade econômica para salvar o meio ambiente e danificar as vidas e os sonhos de seus moradores.
Então “como salvar a Amazônia” não é uma afirmação, é um convite para que todo mundo passe a fazer essa pergunta juntos. Porque ele sabia que o que acontece na Amazônia afeta o mundo inteiro.
BBC News Brasil – Como foi para você abraçar esse projeto e ajudar a terminar o livro, sendo um amigo próximo dele?
Fishman – Depois que o Dom morreu, sabíamos que seu livro tinha que ser publicado, que não podíamos permitir que seu assassinato matasse seu sonho de fazer esse projeto tão ambicioso.
Quando ela veio de Salvador para o Rio para o enterro de Dom, trouxe uma mala de mão preta, toda detonada por arranhões de seus gatos, onde Dom tinha socado seus cadernos de reportagem, vários HDs, computadores, máquinas, cartões de memória, telefones…
A Alê [Alessandra Sampaio], a esposa do Dom, estava determinada, mesmo com toda a tristeza.
Manifestação em homenagem a Dom e Bruno, mortos no Vale do Javari
Reuters via BBC
Eu trouxe esse material para casa para ver o que poderíamos fazer. Felizmente, ele era extremamente organizado. E descobrimos que havia uma imensa riqueza ali. Isso foi determinante para vermos que terminar o livro tinha jeito.
A parte mais difícil foi lidar com a realidade. Todo mundo envolvido neste projeto estava extremamente abalado com seu assassinato, tão injusto e sem sentido. Este foi o projeto mais difícil emocionalmente que eu já fiz na carreira.
Já trabalhei com a “Vaza Jato” [conversas no aplicativo Telegram atribuídas a Sergio Moro e procuradores da Lava Jato reveladas pelo site The Intercept Brasil], com [Edward] Snowden, coisas pesadas. Isso me abalou muito mais.
Senti uma obrigação enorme de honrar o legado do Dom e o compromisso de todos que colaboraram para o livro. Mas acredito que a dedicação e a obsessão que tivemos esteja refletida na obra final, e que o Dom teria, sim, orgulho de nós, por ter feito algo que refletia o que ele queria fazer.
BBC News Brasil – A maioria dos colaboradores são jornalistas estrangeiros. O olhar de fora revela algo sobre a Amazônia que nem todos os brasileiros vêem?
Fishman – Essa escolha foi muito debatida. Queríamos fazer o melhor trabalho possível, mas ninguém havia lidado com uma situação como essa antes. Optamos por fazer um livro com seus amigos, as pessoas que mais conheciam o Dom e se sentiam na obrigação de honrar o que ele tinha feito e a sua visão. E que também usariam esses capítulos para falar um pouco sobre ele. Porque o Dom acabou virando parte dessa história, infelizmente.
Só que dezenas de pessoas queriam participar, e então criamos um sistema com mais 36 colaboradores, brasileiros e estrangeiros, que ajudaram na edição, fact-checking [checagem de fatos], revisão, apoio com fotos. Foi um projeto muito grande.
Ser estrangeiro tem vantagens e desvantagens. Às vezes, dificulta não ter o contexto e as diferenças culturais. Mas um gringo, em certos lugares, é um ser exótico. Dá para rir, mas não tem muitas pessoas britânicas de olho azul falando português na Amazônia. As pessoas ficam curiosas e às vezes encantadas, querem compartilhar sua vida, sua cultura, suas perspectivas com essa pessoa.
Ninguém espera nada de você e as pessoas explicam de formas muito ricas e interessantes, que acabam dando perspectivas diferentes.
BBC News Brasil – Como foi o trabalho de pegar as pontas soltas que ele deixou para concluir o livro?
Fishman – Dom estava no Vale do Javari fazendo a última viagem de seu projeto. Ele já tinha centenas de entrevistas e estava prestes a voltar para terminar de escrever.
Já havia escrito a introdução e os primeiros capítulos, mas, para outros, havia apenas anotações. Uma das coisas mais difíceis foi ligar esses pontos soltos, lidar com essas lacunas.
Dom tinha forte convicção de que é preciso estar no lugar para enriquecer uma narrativa, sentir o que as pessoas estão sentindo, ver o que está acontecendo, perceber a postura e o jeito de falar das pessoas. Certos detalhes contam mais do que páginas e páginas de dados. Então decidimos que não seria possível honrar sua visão sem enviar os autores em viagens. Algumas delas refizeram seus passos, outras foram para novos lugares.
Para o meu capítulo sobre financiamento internacional, por exemplo, eu fui para a COP28 [conferência anual da ONU sobre meio ambiente], em Dubai, uma viagem que o Dom não tinha recursos para fazer, mas imagino que gostaria de ter feito.
BBC News Brasil – O Bruno aparece no livro desde o começo, quando Dom descreve a expedição que fizeram em 2018 para o Vale do Javari. Essa viagem descortinou um novo mundo para Dom, e Bruno foi quem abriu as portas. Qual foi a influência de Bruno sobre Dom?
Fishman – Existem certas pessoas que, pela força de sua personalidade, inspiram jornalistas a seguir cobrindo certas áreas, porque seu espírito é contagioso. O Bruno era esse tipo de pessoa. Era generoso com seu tempo e com repórteres, ajudando a entender as coisas e a fazer com que se sentissem bem-vindos e necessários para fazer a diferença. Todos que eram próximos dele tinham essa conexão muito forte. Ele era extremamente dedicado e apaixonado pelo que fazia, e foi uma grande perda para o movimento.
BBC News Brasil – Dom foi assassinado durante o governo Bolsonaro, em um contexto de desmonte de políticas ambientais, poucos meses antes de Lula ser reeleito. Como acha que ele veria o cenário atual?
Fishman – O projeto de Dom começou no governo Bolsonaro, em que todas as previsões eram muito sombrias, todas as métricas estavam piorando. Ele teria ficado muito feliz ao ver Marina Silva de volta ao Ministério de Meio Ambiente, ao ver Bolsonaro perder a reeleição — não por algo pessoal, mas porque testemunhou como suas políticas estavam aumentando a devastação e o risco à vida de pessoas honestas na Amazônia.
Eu fui para a COP28 em Dubai [em 2023] porque era o lugar perfeito para mostrar o conflito entre os defensores da Amazônia e a realidade do poder internacional. Todo mundo estava empolgado, porque era a primeira COP após a posse do Lula, depois de anos levando soco na cara com o governo Bolsonaro.
Mas na COP, e narramos isso no meu capítulo, esse otimismo bateu de frente com a realidade. As pessoas queriam que o governo Lula tomasse uma postura firme pela proteção do meio ambiente, mas tiveram grandes baques.
O presidente da Petrobras reiterou que quer perfurar todo o petróleo do Brasil até a última gota, e Lula anunciou que o Brasil entraria no Opep+ [o grupo de países produtores de petróleo e associados], reafirmando seu compromisso com indústrias que estão provocando a devastação do planeta. Essa é a luta que continua acontecendo.
BBC News Brasil – Dom e Bruno ganharam enorme visibilidade como símbolos da luta na Amazônia, enquanto vítimas indígenas, quilombolas ou ribeirinhos recebem pouca atenção. Publicar a obra é uma tentativa de dar sentido ao que aconteceu?
Fishman – A atenção que o assassinato de Dom e Bruno ganhou está correta, o que está errado é que outros casos não tenham visibilidade.
A morte deles foi uma tragédia, mas ganhou tanta repercussão que teve efeito político. Acredito que tenha impactado a eleição [presidencial de 2022, na disputa entre Bolsonaro e Lula], que foi extremamente apertada.
Mas é preciso continuar pressionando para que não existam mais casos como esses, sejam de pessoas com “visibilidade” ou que estão tentando defender suas famílias, comunidade, estilo de vida contra interesses financeiros enormes. Nesse sentido, é uma pequena luz que serve como símbolo para essas lutas terem mais força.
Ao mesmo tempo, ativa o imaginário das pessoas. Esses caras não eram de lá, mas arriscaram suas vidas para defender o que achavam certo e ajudar as pessoas da Amazônia.
BBC News Brasil – O desfecho trágico dessa história também joga luz sobre a dificuldade de se fazer jornalismo de qualidade na Amazônia. Ficou ainda mais desafiador?
Fishman – Está mais difícil fazer jornalismo na Amazônia por causa de questões econômicas e de mercado que estão precarizando o jornalismo.
Algumas das maiores empresas de tecnologia estão cortando recursos das redações e o alcance [de suas reportagens] com seus algoritmos. As empresas com maior responsabilidade pela precarização da Amazônia estão patrocinando a cobertura da COP30 dos maiores grupos de jornalismo no Brasil. Qual vai ser o efeito disso na liberdade de fazer uma cobertura crítica sobre essas empresas durante a COP?
Hoje em dia, fazer o que o Dom está fazendo é cada vez mais raro. É caro, demorado e imprevisível. Essas viagens demoram meses para preparar, são extenuantes e arriscadas. Há cada vez menos veículos dispostos a patrocinar ou publicar esse tipo de trabalho. Por isso que a mídia independente precisa existir, e por isso pessoas optam por escrever livros.
BBC News Brasil – Em sua última postagem nas redes sociais, Dom escreveu “Amazônia, sua linda”, com um vídeo feito de um rio margeando a floresta, dias antes de morrer. O que encantou Dom na Amazônia?
Fishman – Dom começou uma segunda vida no Brasil. Ele tinha uma carreira muito bem-sucedida na Inglaterra como jornalista de música. Foi editor-chefe da maior revista de música no país [Mixmag], tinha um BMW corporativo, uma vida glamourosa. Deixou tudo para virar frila e seguir o que o fazia feliz.
Ele veio para o Brasil terminar seu livro [sobre a cena musical dos DJs estelares] e se encantou com a cultura, as pessoas, a natureza.
Isso só se intensificou depois que começou a viajar pela Amazônia e a ver essa força da natureza, com tanta grandeza e beleza. Acho que ele se encantou principalmente pelas pessoas que conheceu. Queria passar todo o seu tempo lá. Quando voltava de uma viagem, só falava nisso e já estava pensando na próxima.
Ele não precisava ter ido nessa última viagem. Ele já tinha conteúdo para fazer os capítulos, poderia fazer alguns telefonemas, mas não era assim que queria fazer o seu trabalho. Ele queria estar presente, sentir os lugares. Era esse sentimento que ele queria passar para os leitores ao escrever esse livro, para transmitir essa conexão emocional com a Amazônia.
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