Jales Guedes Coelho Mendonça
A inundação da cidade de Johnstown (Pensilvânia), nos Estados Unidos, ocorrida em 1889 pelo rompimento de uma barragem, ceifou a vida de mais de 2.200 pessoas e é sempre apontada como uma das maiores tragédias daquela nação.
No Brasil, embora em menor proporção, também tivemos eventos cataclísmicos envolvendo barragens, a exemplo dos recentes casos de Mariana e Brumadinho, na década passada.
No entanto, para o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, a maior tragédia do país não apresenta cadáveres: “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo como Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950” (“A Pátria em Chuteiras”, Companhia das Letras).
A virada uruguaia diante da seleção brasileira na final da Copa do Mundo de 1950, na presença de 200 mil espectadores, no recém-inaugurado estádio do Maracanã — por isso o episódio acabou conhecido como “Maracanaço” —, mereceu a mesma interpretação do respeitado sociólogo Roberto DaMatta: “Essa derrota no futebol tem um peso social muito grande e deve ser investigada de nossa perspectiva. Primeiro, ela é talvez a maior tragédia da história contemporânea do Brasil” (“Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira”, Pinakotheke).

As balizadas opiniões do cronista e do antropólogo descortinam indiscutivelmente o peso do futebol no Brasil, onde a modalidade esportiva não pode ser entendida como uma mera atividade recreativa. Em seu aspecto profissional, tornou-se um acontecimento impregnado de símbolos sociais e culturais, sustentado em bases econômicas robustas, forte apelo popular, além de temperado de fortíssimas emoções.
Essas emoções são o destaque, é evidente. Foram elas que jorraram forte lá no século XIX e impulsionaram, no início, o que era só uma brincadeira entre os estudantes britânicos. Brincadeira que ganhou a Inglaterra, espalhou-se pela Europa, atravessou o Atlântico e, no Brasil, chegou ao ápice do seu refinamento, acompanhado pelo furor de torcidas que se tornaram imprescindíveis para o espetáculo.
Ainda não havia se encerrado a primeira década do século XX e em São Paulo já se falava em jogos que excitavam o público e agitavam a imprensa. Daí em diante, foi um caminho sem volta.
Com todos os seus acertos, erros, virtudes, vícios, inovações, resistências e muito mais, o futebol fez crescer suas raízes em nosso país e se transformou em um dos pilares da civilização brasileira.
Pilar econômico importante, ao movimentar somas cada vez maiores. E pilar cultural, entranhada na alma das pessoas, inseparável do cotidiano de cariocas, paulistanos, goianos, pernambucanos, mineiros e tantos outros.

A ditadura do Estado Novo (1937-1945), sempre atenta, logo reconheceu o fenômeno e foi ao seu encontro. É de 1941 o decreto-lei nº 3.199, de Getúlio Vargas, que regulou a prática esportiva e deu ao futebol a sua estatura de setor diferenciado, com normas próprias. Ademais, criou a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), embrião da poderosa CBF, bem como as federações nos Estados-membros.
O espetáculo do título em 2025: Vila Nova campeão
Três anos depois daquela norma, a Federação Goiana de Futebol (FGF)) passou a organizar o campeonato de futebol de Goiânia, ainda amador, mas hoje reconhecido oficialmente como o primeiro campeonato estadual de futebol. Não era o início da história.
O início havia sido em 1907, com os jovens que “batiam bola” no Largo do Chafariz, da histórica Cidade de Goiás (patrimônio cultural da humanidade desde 2001), sob o estímulo de Walter Sócrates.
Goiás e o futebol, depois de se conhecerem, não se desconectaram mais. Em cada cidade, aflorava a paixão por seus times locais, por seus torneios municipais, por suas rivalidades de bairro. O campeonato de 1944 era resultado dessa euforia em Goiânia.
Um sentimento que continuou em escalada, década após década, dando origem a um dos campeonatos estaduais mais vibrantes do futebol brasileiro, a ponto de ganhar as telas das emissoras nacionais de TV atualmente e se tornar, a partir da década de 1980, um dos mais importantes do país.

Um campeonato como esse, que colocava em transe os nervos dos torcedores e dos atletas, precisava de um clube que tivesse não só a camisa vermelha, mas também a alma flamejante como fogo e a força do povo.
Foi em 1961 que esse clube, o Vila Nova — nome do bairro dos operários que vieram construir a nova capital goiana —, se impôs e deixou claro que havia chegado para ficar, erguendo pela primeira vez a taça de campeão do Estado de Goiás. Nos dois anos seguintes, mais dois títulos. Além de tricampeão, foi o primeiro clube de Goiás a disputar a Taça Brasil, autêntica origem do campeonato brasileiro de clubes profissionais.
As façanhas no início da década de 1960 foram só o início. Na década seguinte, sua maior glória, conquistada não nos gramados, mas nas quadras de basquete: os títulos brasileiro e sul-americano, injustamente quase sempre desconsiderados.
O Vila do tetra de 1980, o Vila da renhida decisão de 1993, da virada épica (o famoso 5 x 3) de 1999 sobre o maior rival, o Vila, de tantos outros feitos, é um clube cheio de belas histórias a contar.
Mas agora é tempo de saudar a sua última grande conquista. A deste ano de 2025: heroica, dramática e visceral.
Porque foi um êxito alcançado daquele modo que só o futebol, com sua natureza fantástica, permite que seja. O que parecia dificílimo (dificílimo, não: impossível) se fez realidade. Tornou-se um fato visto, ouvido e sentido por milhares.
A certeza dos anapolinos, depois daquele gol de Samuel Michels no Jonas Duarte, ruiu diante do urro incontrolável, insano e vermelho que dominou o Serra Dourada. Depois da tragédia de 2023 diante do ABC de Natal— o “Natalaço” —, o título de campeão estadual de 2025 veio do jeito certo. Para lavar a alma, irremediavelmente.
Renato Dias, autor de “O Time do Povo e da Virada” e jornalista com vasta produção sobre o tema, louva a conquista de 2025 com o amor típico de um vilanovense sem freios.
O seu texto é intenso. Tão intenso quanto o futebol costuma ser. Intenso como aquela partida de 30 de março deste ano, que foi coroada com um gol decisivo aos 51 minutos do segundo tempo.
Parece que Renato Dias fala de uma epopeia medieval ou de uma grande batalha de encouraçados na Primeira Guerra Mundial. É uma narrativa mais do que engajada. É trovejante, grandiloquente, a cada título, a cada parágrafo e a cada foto. Sem limites. Parece que o objetivo é levar o leitor vilanovense às lágrimas, ao recordar-se daqueles acontecimentos.
Palavras e frases marcantes não podiam faltar em uma obra como esta. Elas são, de fato, apropriadas ao frenesi do futebol. Tentam revelar o ânimo presente nos corpos e mentes, no gramado, nas arquibancadas, nas cabines de imprensa e até no entorno do estádio.
“Uma Virada para a História” é mais do que uma frase em um livro. É uma declaração que exala o fervor do acontecimento real daquele dia. As imagens, por sua vez, embalam e conduzem o leitor por uma jornada eletrizante. São muitas as imagens selecionadas por Renato Dias para este livro. Todas de notável impacto.
Dos heróis do título, sobressai a figura de Hugo Jorge Bravo, que ganha a alcunha de “general”, quase imitando o que aconteceu com Paulo Machado de Carvalho, o “Marechal da Vitória” nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.
A imagem de Hugo Jorge Bravo, o presidente-torcedor vilanovense, deixa transparecer limpidamente o sentido de doar-se ao seu clube do coração. É um sacerdócio, marcado pela lealdade, resignação e euforia.
A torcida que se alça à condição de maior e mais fanática de uma metrópole entende sem dificuldade o que é esse tipo de euforia e o presidente Hugo Jorge Bravo não só a entende, mas também a encarna, do modo mais sincero e dedicado possível, como se percebe nas páginas deste livro.
O livro oferece informações interessantíssimas àqueles que adoram a história do futebol. Há várias páginas que relembram as diversas conquistas do Vila Nova.
O tricampeonato da Série C, por exemplo, merece um capítulo à parte e nele o autor exalta os seus grandes nomes. Também há protestos contra injustiças impostas ao clube (ainda muito vivas na memória).
Algum leitor poderá dizer que tais protestos de Renato Dias se sustentam em observações enviesadas. Ele, certamente, se orgulhará disso e completará: “Muito enviesadas e o viés é nitidamente vermelho”. Seu arremate é de um devoto: “Vila Nova, obrigado por existir”.
Não resta dúvida: é uma leitura especial. Não só para quem ama o Vila Nova, mas para quem ama o futebol. Uma leitura especial para quem aprecia a dinâmica apaixonante desse esporte e sente prazer ao tomar conhecimento de informações históricas sobre um clube tradicional.
Neste caso, um clube tradicionalíssimo de uma das maiores capitais do país. Será uma jornada por páginas esportivas recheadas de sensações. Afinal, o que não faltou no dia em que o Vila Nova concluiu o campeonato de 2025, quebrando um jejum de 20 anos, foram sensações. E sensações das mais poderosas, como Renato Dias busca mostrar e consegue.
Jales Guedes Coelho Mendonça é promotor de Justiça, doutor em História (UFG), presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) e sócio-correspondente brasileiro do IHGB. O texto, prefácio do livro, é publicado pelo Jornal Opção com autorização do autor.
O post Renato Dias lança um livro trovejante sobre o grande campeão Vila Nova, o rei do futebol em Goiás apareceu primeiro em Jornal Opção.