A Editora Todavia vai publicar “O Beijo da Mulher Aranha”, de Manuel Puig (1932-1990 — viveu 57 anos), em setembro deste ano, com tradução de Sergio Molina (garantia de excelência). Oxalá publique toda a sua obra, que é de excelente qualidade. Na década de 1980, quando eu estudava História na Universidade Católica de Goiás e Filosofia e Jornalismo na Universidade Federal de Goiás, o autor argentino era leitura obrigatória. Era, por assim dizer, mais experimental do que a dupla dinâmica e rival Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. E também mais, por assim dizer, escrachado, divertido e nada solene.

“O Beijo da Mulher Aranha” é seu livro mais conhecido, sobretudo devido ao filme de Hector Babenco, com Sônia Braga e William Hurt. Vale a pena, em seguida, a Todavia traduzir “A Traição de Rita Hayworth”, outro de seus livros de alta qualidade.
A seguir, vou expor quatro visões sobre a obra de Puig: a do escritor argentino César Aira, a da crítica carioca Bella Jozef, a da crítica argentina Elsa Drucaroff e a do espanhol Xavi Ayén.
1
César Aira, da Argentina
O texto de César Aira figura no seu excelente “Diccionario de Autores Latinoamericanos” (Paidós, 703 páginas).
César Aira, em geral preciso, começa com um erro, ao publicar que Puig nasceu em 1933, quando, na verdade, nasceu em 1932.
“Foi em boa medida autodidata e a paixão pelo cinema foi dominante desde a infância”, assinala César Aira.
“Na Europa trabalhou como assistente de direção cinematográfica e viajou abundantemente como funcionário de uma companhia aérea”, diz o pesquisador.

“Seu primeiro romance, ‘A Traição de Rita Hayworth’, foi finalista do concurso Biblioteca Breve, na Espanha, e, depois de um processo complicado, saiu em Buenos Aires em 1968.”
César Aira postula que, “autobiográfico”, o romance contém “um sentido trágico que seria permanente” na literatura “do autor, a despeito do certeiro costumbrismo quase humorístico de seus primeiros romances”.
O crítico sublinha que “‘A Traição de “‘Rita Hayworth’ tinha a novidade de estar estruturado integralmente com base na superposição de distintos discursos, nenhum deles com pretensões de verdade psicológica, e sim, mais precisamente, de explicitação de fantasias, hipocrisias e alienações (nas quais o cinema ocupa o primeiro plano); delas surge, com uma magia aterrorizante, o destino do protagonista”.
Um dos mais finos ficcionistas argentinos, César Aira frisa que “A Traição de Rita Hayworth” obteve o aplauso da crítica e dos leitores.
O romance “Boquitas Pintadas”, de 1969, também obteve o apreço da crítica e do público. “Construído com a mesma técnica de “A Traição de Rita Hayworth”, conta “uma história de amor impossível”.

De acordo com César Aira, “‘The Buenos Aires Affair’, de 1973, apresentado como romance policial, exacerba o tema sexual e aperfeiçoa, ainda mais, a técnica novelística”.
Com o golpe militar de 1976, que produziu uma das ditaduras mais cruentas da América Latina, Puig se exilou no México, depois em Nova York e, por fim, no Rio de Janeiro.
Em 1976, publicou “O Beijo da Mulher Aranha” (que resultou no filme com Sônia Braga e William Hurt), “apaixonada história de amor no cárcere”.
“Pubis Angelical” saiu em 1979. “Como o romance anterior”, a história “se desenvolve no plano da realidade (uma exilada argentina está morrendo de câncer no México) e da fantasia cinematográfica”, sinteriza César Aira.
“Maldición Eterna a Quien Lea Estas Páginas” (“Maldição Eterna A Quem Ler Estas Páginas”), de 1981, é, pontua César Aires, um “prodígio de economia, quase beckettiana, sombria e trágica, sem atenuantes”.
“Sangre de Amor Correspondido” (“Sangue de Amor Correspondido”), de 1982, é uma “comovente história de um amor filial ambientada no Rio de Janeiro”.

A história de “Cae la Noche Tropical”, de 1988, também ocorre no Rio de Janeiro.
César Aires afirma que Puig “não escreveu contos nem ensaios, e sim alguns artigos”, reunidos e publicados postumamente: “Gli Occhi di Greta Garbo” (escrito em italiano), de 1991, e “Estertores de una Década, Nueva York 1978”, de 1993.
Puig publicou um livro com dois roteiros para cinema: “La Casa del Villano” e “Recuerdo de Tijuana”, de 1985.
O prosador deixou outros inéditos, como “La Tajada”, escrito em 1960 e publicado em 1995. César Aira diz que o texto é “extraordinário”.
O teatro de Puig é, segundo César Aira, de “grande mestria”. Suas peças: “Bajo un Manto de Estrellas”, “En Misterio de Ramo de Rosas”, “El Beso de la Mujer Araña”, “Triste Golondrina Macho”, “Siete Pecados Tropicales”, “Gardel, una Lembrança” e “Muy Señor Mío”. As duas últimas são “comédias musicais”.
2
Bella Jozef, do Brasil

No seu excelente clássico “História da Literatura Hispano-Americana” (Editora UFRJ e Francisco Alves Editora, 420 páginas), a crítica Bella Jozef (1926-2010) trata de Puig em duas páginas valiosas.
Bella Jozef enfatiza que “nas obras de Manuel Puig há uma interpretação estética da classe média argentina. ‘A Traição de Rita Hayworth’ descreve a mitificação do cinema nas mentes populares”.
A crítica assinala que “cada personagem se nucleou em torno a uma linguagem, a um detalhismo minucioso; o resultado foi a visão interior de um grupo de jovens da década de 1940”.
Por meio “de uma linguagem de segunda mão, que não é própria de cada um, aquele mundo é minuciosamente desmitificado, mostrando a defasagem entre mito e realidade, entre o imaginário e o aprendizado real da vida”, postula Bella Jozef.
“‘A Traição de Rita Hayworth’, romance centrado em si mesmo, define um mundo. Cada personagem é seu próprio narrador. (…) O cotidiano foi captado com grande habilidade nos diálogos, enquanto o irreal e mágico se projetam nos monólogos, através das fixações infantis de Toto”, anota a crítica.
A trama não tem tanta importância em “Boquitas Pintadas”. “O importante é como o autor a transmite. Por isso, o texto em questão é uma das mais importantes contribuições experimentais ao romance atual [o livro de Bella Jozef é de 2003]. A alienação dos caracteres devido aos meios de comunicação de massa é ligada à alienação da linguagem, fac-símile de fotonovela e cinema.”

No romance “The Buenos Aires Affair”, o “mundo imaginário continua ligado ao radioteatro, telenovela e noticiário de jornais (índices de verossimilhança do processo narrativo de base referencial e que dissimula o processo de enunciação)”.
Bella Jozef observa que “cada capítulo inicia-se com uma epígrafe tomada de alguma película, em diálogo intertextual indicando o tom emocional e o conteúdo, e que serve de emblema para o sonho que vivem os personagens, projetando nos astros e estrelas de cinema seus desejos impossíveis. (…) O narrador vai tomando consciência das coisas juntamente com o leitor”.
Já em “O Beijo da Mulher Aranha”, expõe Bella Jozef, “um narrador invisível reduz seu papel a um registro de vozes que se encarregam da apresentação da matéria narrativa. O leitor toma conhecimento das personagens através da sucessão de cenas dialogadas aparentemente objetivas, aproximando-se, assim, mais do relato, já que a palavra do herói não pertence ao romancista”.
A crítica acrescenta que, “como textos conformadores da estrutura, há notas explicativas e analíticas, monólogos interiores, relatos de filmes e informes penais, textos burocráticos em sua impersonalidade. O hábil processo narrativo supre com elementos da cultura pop o não dito, desvelando regiões latentes de cada um dos protagonistas. A fantasia faz sobreviver os dois oprimidos em sua vida psíquica e claustrofóbica social”.

O tema melodramático reaparece em “Pubis Angelical”, sugere Bella Jozef. Puig “tenta capturar o inconsciente dos caracteres, convencido de ‘Freud matou o romance do século 19’. Descobrindo novo espaço criador para a literatura, usa formas historicamente homologadas para desmitificá-la e, nesse aspecto, pode ser considerado precursor na América hispânica”.
3
Elsa Drucaroff, da Argentina
O livro “Atlas de Literatura Latinoamericana — Arquitectura Inestabele” (Nordica Libros, 222 páginas; a edição é belíssima), organizado por Clara Obligado, contém ensaios de vários autores, como Mariana Enriquez, Mónica Ojeda, Elsa Drucaroff, Leila Guerriero, Rodrigo Fuentes, Lina Meruane, María Negroni.
Entre os autores analisados estão Antonio Di Benedetto, Roberto Bolaño, Cabrera Infante, Sara Gallardo, Elena Garro, Guimarães Rosa, Lezama Lima, Clarice Lispector, Carmen Lyra, Silvina Ocampo, Nicanor Parra, Virgilio Piñera, Alejandra Pizarnik, Manuel Puig entre vários outros.
O ensaio de Elsa Drucaroff tem o título de “Manuel Puig, a libertad del marginal”. Curto e dos melhores.
Elsa Drucaroff começa contando que Manuel Puig nasceu em General Villegas, em 1932, no pampa argentino. Era um garoto sensível e perceptivo, o que incomodava a mediania e o conservantismo reinantes no local.
O que salvou Puig? Um cinema que havia perto de sua casa. Então, ante uma realidade rude, descobriu na ficção um caminho possível, um escape.

Puig “entra” na literatura por meio do cinema e, por isso, sempre usou o cinema como fonte, quer dizer, iluminação para sua ficção.
Um depoimento de Puig: “Eu não decidi passar do cinema ao romance. Estava planejando uma cena para um roteiro em que a voz em off de uma tia minha introduzia a ação. Essa voz tinha que ser de duas ou três linhas de duração e seguiu, sem parar, por umas trinta páginas. Não houve como fazê-la calar-se. Ela só tinha banalidades para contar, mas me pareceu que a acumulação de banalidades dava um significado especial à exposição. A história das trinta páginas de banalidades aconteceu num dia de março de 1962, e eu tampouco tenho conseguido calar desde então. Tenho seguido com minhas banalidades, não quis ser menos do que minha tia”.
A crítica e escritora nota que a iniciação literária de Puig — ressalvo que percebi uma certa ironia no que ele disse — é bem diferente da de outros autores, que, em geral, citam Proust, Joyce e Faulkner como influências basilares.
Com Puig, sublinha Elsa Drucaroff, “vibra a liberdade do marginal, de quem, habituado ao escárnio e ao desprezo, elege com firmeza e sem espanto que igual será o desejo como artista. O cinema lhe chegou como o som de sua voz”.

“Puig escreverá para entender a dor das mulheres provincianas, que são oprimidas”, como o próprio escritor, que era homossexual. Se tornou um crítico, via literatura, do patriarcado… o de direita e o de esquerda.
Nas décadas de 1960 e 1970, numa “Argentina politicamente febril”, as esquerdas dominaram a cena cultural, determinando o que valia e o que não valia a pena. Puig ganhou o rótulo de “frívolo”, por não escrever literatura engajada, em termos ideológicos.
A literatura de Puig põe em cena vozes esquecidas, sem ou com escasso registro. Ao escutá-las, o autor leva para sua literatura tanto a dor quanto a sabedoria.
Elsa Drucaroff diz que “muitos críticos leram a mestria de Puig em captar vozes como pura paródia”. A crítica diz que se trata de um equívoco. “Há paródia mas, ademais, há respeito, a convicção de que sabem. Medíocres temerosos, machões forçados a demonstrar que o são, mulheres convencidas de que sem amor não vale ter razões tão profundas como o militante que se crê iluminado, o assassino homofóbico ou as velhas que, enquanto fofocam, festejam como ninguém a beleza da vida”.

“Criei um estilo com os desejos, com o lixo que as pessoas cultas jogavam fora; com a sobra que deixava a intelligentsia argentina. Com o mau gosto que eles desprezavam e pensavam ser inútil dei peso à minha linguagem”, anotou Puig.
“Puig fez sua obra com o que não se via e hoje se vê. Por isso está tão viva”, aposta Elsa Drucaroff.
4
Xavi Ayén, da Espanha
Manuel Puig pode ser incluído no boom da literatura latino-americana, dos quais os escritores mais conhecidos são Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes e José Donoso? É possível. Mas sua literatura era diferente da escritura do colombiano, do peruano, do mexicano e do chileno.
No livro “Aquellos Años del Boom” (Debate, 559 páginas), Xavi Ayén conta que, nos anos 1970, Puig era conhecido “como um voraz cinéfilo”.
Circulando por Paris, Londres e Barcelona, Puig costumava se encontrar com Néstor Almendros e Severo Sarduy (um dos mais importantes escritores de Cuba, admirado por García Márquez).

O malicioso Óscar Collazos relata: “Puig tinha relação com Guillermo Cabrera Infante e Terenci Moix — os uniam o cinema e os garotos”.
Puig amava o cinema e entendia como poucos do assunto. Trabalhou em um filme produzido por David O. Selznick.
O primeiro romance de Puig, “A Traição de Rita Hayworth”, de 1969, “foi editado primeiro pela Gallimard”, depois por Carlos Barral. A linguagem oral, assinala Xavi Ayén, “é veículo da narração e a própria história”.
“Movido pelo expressionismo alemão, pelo neorrealismo italiano, pela nouvelle vague francesa e por Hollywood, [Puig] passou mais tempo gravitando entre Paris, Londres e Nova York, sem esquecer nunca Buenos Aires e com um entusiasmo permanente pelo México. Ali morreu, em Cuernavaca”, conta Xavi Ayén.
A obra de Puig é reeditada com frequência, menos no Brasil. “Vale considerá-lo como um escritor de estilo próprio que”, tendo convivido com os autores do boom, não foi absorvido por ele.
O post Editora Todavia vai publicar “O Beijo da Mulher Aranha”, de Manuel Puig, com tradução de Sergio Molina apareceu primeiro em Jornal Opção.