Fabio Giambiagi discute: a socialdemocracia fracassou?

[Segunda e última parte da resenha do livro “A Vingança de Tocqueville — A Importância do Bom Debate”, de Fabio Giambiagi. Alta Cult, 384 páginas]

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

O capítulo 11 do livro do economista Fabio Giambiagi, intitulado “Fracasso Socialdemocrata”, propõe uma reflexão crítica sobre os rumos do Brasil após a redemocratização iniciada em 1985.

Fabio Giambiagi analisa com precisão cirúrgica não apenas os impasses políticos e econômicos do período, mas, sobretudo, o esvaziamento de um projeto de país que se pretendia inclusivo e eficiente, guiado por ideais socialdemocratas. O autor chama a atenção para o fato de que, apesar dos progressos, o Brasil patinou em sua tentativa de conciliar estabilidade macroeconômica com justiça social, como propunha a socialdemocracia.

O texto parte de uma discussão semântica relevante: qual o significado que se deve atribuir à expressão “fracasso socialdemocrata”? Seria ele absoluto ou relativo? O autor rejeita abordagens apressadas ou maniqueístas. Reconhece avanços importantes desde 1985, mas sublinha que esses avanços não foram sustentáveis ou transformadores o suficiente para produzir um salto qualitativo duradouro. Isso exige do leitor um exercício de avaliação histórica madura — um convite à persistência intelectual e ao aprendizado de longo prazo.

Fabio Giambiagi identifica ao menos três avanços estruturais relevantes no período:

— A estabilização monetária com o Plano Real (1994), que finalmente controlou a hiperinflação e restabeleceu as bases mínimas de racionalidade econômica;

— A ampliação das políticas sociais, em especial os programas de transferência de renda, que contribuíram para a redução da pobreza extrema, sobretudo nos anos 2000;

— A expansão do acesso ao ensino superior, com a criação de universidades federais e programas como o Fies e o Prouni, democratizando o acesso a um segmento antes elitizado.

Contudo, ao avaliar as quase quatro décadas desde a redemocratização, Fabio Giambiagi argumenta que os avanços não resultaram em um modelo de desenvolvimento robusto, autossustentável e inclusivo.

Fabio Giambiagi: um dos mais questionadores economistas brasileiros | Foto: Reprodução

O que houve, segundo o economista, foi uma administração dispersa e fragmentada de ganhos pontuais, sem uma política de Estado capaz de consolidar e aprofundar tais conquistas. O pacto socialdemocrata, ao contrário do que se viu na Europa do pós-guerra, não foi alicerçado no Brasil por consensos duradouros, mas por acomodações frágeis e frequentemente contraditórias.

Essa constatação é fundamental para articular o capítulo à ideia central da obra “A Vingança de Tocqueville”. O francês Alexis de Tocqueville, ao analisar a democracia americana no século XIX, advertiu sobre os riscos enfrentados por sociedades que não promovem reformas estruturais em tempos de bonança. Quando se posterga o enfrentamento dos problemas — acreditando que o simples crescimento econômico ou o funcionamento das instituições formais bastarão —, a conta chega de forma perversa: sob a forma de populismo, radicalismo ou estagnação.

Assim, a vingança de Tocqueville no Brasil manifesta-se na incapacidade de transformar os ganhos das décadas de 1990 e 2000 em reformas estruturantes. A persistência de desigualdades profundas, a má qualidade dos serviços públicos, a disfuncionalidade do sistema político e a estagnação econômica dos anos 2010 são, para o expert, sintomas de um projeto de país inconcluso.

A socialdemocracia brasileira fracassou não por seus princípios, mas por sua superficialidade, por sua hesitação em enfrentar privilégios e por sua aposta em consensos fáceis.

O capítulo, portanto, é um convite à lucidez. Longe de demonizar a redemocratização, ele propõe um balanço honesto, comprometido com a crítica construtiva e com a possibilidade de um novo ciclo que recupere o aprendizado acumulado. Persistir e avaliar, como enfatiza Fabio Giambiagi, é o oposto de repetir os mesmos erros sob roupagens ideológicas diferentes.

Se quisermos evitar novas “vinganças de Tocqueville”, será necessário mais do que boas intenções: será preciso coragem reformista, responsabilidade intergeracional e um novo pacto político baseado em resultados — e não apenas em retórica.

A vingança de Tocqueville em Goiás

Fabio Giambiagi nos oferece, com firmeza e elegância, um espelho. Cabe a nós decidir se vamos continuar desviando o olhar.

No caso de Goiás, observa-se que, a partir dos anos 1980, houve uma preferência por soluções de curto prazo em detrimento de estratégias de longo prazo, negligenciando a construção de instituições sólidas e consistentes. Essa escolha resultou em práticas políticas que se afastam dos ideais democráticos de transparência e responsabilidade, como evidenciado por negociações realizadas à margem do debate público.

A situação da Companhia Energética de Goiás (Celg) exemplifica esse declínio institucional. A empresa enfrentou desafios significativos, incluindo má gestão e falta de investimentos, culminando em sua privatização. Esse processo refletiu a dificuldade de manter um debate público qualificado e baseado em fatos, conforme enfatizado por Giambiagi.

Outras medidas, como a privatização do Banco do Estado de Goiás, a extinção da Caixa Econômica estadual e a privatização da Usina de Cachoeira Dourada, também ilustram a tendência de decisões tomadas sem ampla discussão pública e sem considerar os impactos de longo prazo.

Esses exemplos demonstram como a prática democrática em Goiás, durante esse período, se distanciou dos princípios defendidos por Alexis de Tocqueville, especialmente no que diz respeito à importância de pesos e contrapesos e à participação cidadã informada. O preço a pagar acabou sendo pago pela população ante     a avassaladora perda de ativos públicos. A “vingança de Tocqueville”, de que tanto nos fala o lúcido Fabio Giambiagi em seus escritos, se fez presente nesta terra do Anhanguera chamada Goiás.

Um dos princípios fundamentais para construção da democracia preconizadas por Tocqueville é a da transparência. Nesse sentido, o povo de Goiás não viu a luz do sol iluminar as negociatas feitas na calada dos gabinetes em torno do patrimônio público. Faltou a luz sol, em tempos idos — tucanos, digamos assim. Num ambiente como esse, léguas distantes de uma sociedade democrática, a vingança de Tocqueville impôs ao Estado uma das maiores perdas patrimoniais de ativos públicos no Brasil.

Uma proposta do autor: o bom debate

No livro “A Vingança de Tocqueville”, o economista Fabio Giambiagi propõe uma reflexão essencial para o amadurecimento institucional do Brasil: a necessidade urgente do bom debate. Longe de se restringir ao campo da economia, essa proposta perpassa o terreno mais amplo da vida democrática, onde o embate de ideias deve ser marcado não pela agressividade, mas pela civilidade, pela escuta ativa e pela disposição ao contraponto respeitoso.

Para Giambiagi, a democracia não é apenas o ato periódico de votar; é, sobretudo, um processo contínuo de deliberação coletiva. Nesse processo, o bom debate exerce um papel estruturante. Ele exige que os interlocutores, mesmo partindo de visões antagônicas, reconheçam a legitimidade da opinião do outro e busquem construir consensos possíveis, sem abrir mão da racionalidade e do respeito mútuo. A ausência desse espírito crítico-civilizado fragiliza a democracia, transforma adversários em inimigos e mina a confiança pública nas instituições.

Parte fundamental dessa proposta é a distinção entre políticas de governo e políticas de Estado. O bom debate deve deixar claro que enquanto as políticas de governo — como programas temporários ou prioridades administrativas — são legítimas expressões da alternância de poder, as políticas de Estado devem ser preservadas de mudanças abruptas, pois representam pactos de longo prazo em áreas como educação, infraestrutura, previdência e equilíbrio fiscal. Romper com esses consensos em nome de vaidades ou conveniências partidárias é desperdiçar capital institucional e sacrificar o futuro.

Ao advogar por uma cultura do bom debate, Giambiagi recupera o espírito tocquevilliano de que a democracia só se realiza plenamente onde há cultura cívica, ou seja, quando os cidadãos compreendem os limites do poder, o valor do diálogo e o dever de construir pontes — mesmo em tempos de divergência. A civilidade, portanto, não é adorno. É pré-condição da convivência democrática.

Mais do que um chamado ao centro ou à moderação política, a proposta do bom debate é um apelo à responsabilidade no uso da palavra pública. Em tempos de polarização extrema, fake news e cancelamentos sumários, cultivar esse espaço racional de troca é um ato de resistência e de compromisso com o país.

Giambiagi, ao lançar luz sobre esse tema, lembra-nos que o verdadeiro progresso de uma nação depende não só de boas ideias, mas de ambientes que saibam acolhê-las, testá-las e refiná-las com maturidade democrática. O bom debate, nesse sentido, é mais do que um método. É um valor. E um valor que urge ser resgatado.

Um convite ao pensamento crítico

O pesquisador Fabio Giambiagi construiu uma grande obra, marcada por uma linguagem comunicativa e acessível, desprovida do economês que costuma afastar leitores não especializados.

Com clareza e didatismo, Giambiagi oferece uma análise profunda do desenvolvimento político e econômico do Brasil contemporâneo, sem abrir mão do rigor analítico.

Dentre os diversos temas tratados no livro, o resenhista que vos fala precisou fazer escolhas. Assuntos de indiscutível relevância acabaram sacrificados em nome de um texto coeso, articulado dentro do espaço concebido para esta publicação.

Não custa dizer: aqueles que se interessarem pelo tema devem adquirir o livro e lê-lo da primeira à última página. “A Vingança de Tocqueville” é mais do que um diagnóstico sobre os impasses brasileiros — é um convite ao pensamento crítico. Trata-se de um livro escrito não apenas por um talentoso economista com larga experiência no serviço público. Fabio Giambiagi é mais do que isso: é um sábio, no pleno sentido da palavra — alguém capaz de articular história, teoria econômica e lucidez política com rara competência.

Em um tempo em que a superficialidade muitas vezes ocupa o lugar da reflexão, a verdadeira “vingança de Tocqueville” talvez seja justamente essa: demonstrar, como faz Giambiagi, que não há atalhos para o progresso, e que o preço da negligência institucional é sempre mais alto do que parece.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. É autor de nove livros relacionados aos temas energia, política, economia e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.

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