Contistas escrevem sobre a própria morte. Conto 8 — De Pablo Mathias

Urubu-rei

Pablo Mathias

Especial para o Jornal Opção

O carro descia a serra com muita dificuldade. As rodas rangiam e sentíamos que a borracha dos pneus poderia se rasgar a qualquer momento. Sacolejávamos por aquela estrada de chão batido, estreita, esburacada, forrada de cascalhos soltos e engolida, cada vez mais, por um cerrado ralo. O horizonte desaparecia à nossa frente e a paisagem de árvores retorcidas ia se transmutando para uma mata úmida, de extrato vegetal elevado.  Quando olhávamos para cima, pelo vidro, víamos uma nuvem de urubus circulando sobre nossas cabeças. Um pouco antes de chegarmos no final da grota, nossas narinas foram invadidas pelo cheiro da carne em decomposição. A mata, que agora cobria nos cobria, estava em silencio. Deixamos o carro a poucos passos do caminhão tombado. 30 cabeças de gado se misturavam com engrenagens, ferros soltos, madeira, ossos, chifres e sangue. O cheiro ocre não nos espantou e uma nuvem de moscas se misturou com a mancha de urubus que nos sobrevoava.

Uma estrada sem saída, que terminava em um pequeno córrego de águas cristalinas. A hipótese que traçamos foi a de que o motorista deva ter se perdido pelas várias estradas vicinais da região e, na ânsia de encontrar algo, acelerou demais e perdera o controle do veículo. Ou perdeu o freio, quem sabe? Dentro daquela infinidade avermelhada de tripas, enegrecida por moscas e urubus, acabei percebendo um voo mais avolumado. Acompanhei o vulto e vi quando o urubu-rei pousou no chão. Observei como ele garantia o respeito das outras aves e das moscas e nos observou avaliando se era o momento de se aproximar das carcaças.

Eu havia ficado dois meses naquela região estudando o comportamento dos urubus-rei. Meu mestrado estava começando e meu orientador havia escolhido aquele ambiente de serras escarpadas e secas como área de estudo. Eu passava os dias procurando revoadas de carniceiros, observando a matéria orgânica sendo decomposta e triturada por estes animais. Depois de alguns dias andando sozinho, comecei a imaginar que minha morte deveria ser assim, ali naquele lugar, com meu sangue servindo de alimento para estes animais e para aquele solo. Essa seria uma morte boa de se ter.

Quando eu era criança, lembro de estar dentro de um barco com meu pai em suas pescarias e colocar o dedo indicador para riscar a água com o barco em movimento, e da voz grave dele me avisando que eu poderia perder o dedo para as piranhas. Eu perguntava a ele sobre esses peixes e ouvia as histórias dos bois sacrificados e de algum peão ou banhista desavisado que perdiam a vida e eram consumidos em minutos por estes animais. Naquela época meu medo e minha certeza era uma morte por piranhas. O que não me impedia de nadar sempre que surgia uma oportunidade.

Houve um tempo que a morte heroica povoava a minha cabeça, como a de todo rapaz. Uma guerra justa de se lutar, a defesa de alguém importante, um amor. Ser chorado por muitos, ser velado com honras. Esse tempo transita muito rápido para uma possível morte estúpida. Qualquer uma que envolva carro, bebidas, festas e drogas.

 Eu retornei ao local onde o caminhão havia tombado várias vezes. Acompanhei o desaparecimento daquela massa morta, a retirada de seus restos e consegui observar o urubu-rei por diversas oportunidades. Havia concluído a dissertação e aquele ponto havia ficado marcado como um encontro meu com a minha própria morte. Eu tomava banho no córrego, escutava as águas frias que corriam rápidas. Às vezes acendia um cigarro e pensava se morreria em algum acidente de carro, com algum diagnóstico de câncer de pulmão e lembrava dos bois e vacas que ficaram ali. E que permanecem até os dias de hoje naquela mata.

Muitos anos depois do urubu-rei, fazendo um trabalho no Pará, avistei um pequeno córrego. O local guardava semelhanças cênicas com o do meu antigo retiro. Em algum momento, avistei um calango-liso em uma árvore. Me aproximei devagar para não o assustar. A poucos passos do grande tronco, escutei algo batendo forte no chão. Levei um susto, mas me mantive estático. Não consegui ver o que provocara o barulho. Outra vez o mesmo barulho. Desta vez, percebi que estava debaixo de uma castanheira e que era tempo dos frutos caírem. Por algum motivo não saí imediatamente. O terceiro fruto, que deveria pesar um quilo, acertou em cheio o meu crânio. Tombei no chão inconsciente. A imagem do caminhão tombado fixou em meus olhos e tudo ficou vermelho. Morri 40 minutos depois e meu corpo foi achado quase três horas mais tarde. Uma nota no jornal local dizia que biólogo havia morrido em acidente de campo. Nenhum urubu-rei desceu em meu corpo.

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