Por Flávio Chaves*
Lady Gaga é um desses fenômenos raros que o mundo da arte produz de tempos em tempos. Nascida Stefani Joanne Angelina Germanotta, em 1986, em Nova Iorque, escolheu como nome artístico a referência direta a “Radio Ga Ga”, canção do Queen imortalizada pela voz estrondosa de Freddie Mercury. Gaga não apenas homenageia seu ídolo — ela reinventa, desafia e desconstrói o próprio conceito de pop star. Multi-instrumentista, compositora, atriz, uma artista completa. E, acima de tudo, inteligente. Uma performer que transita do jazz clássico ao eletrônico, da balada à catarse, sem perder a identidade.
Sua trajetória cinematográfica com Nasce Uma Estrela (2018) não foi mero acaso. Foi a concretização simbólica do que ela representa: uma estrela que soube nascer muitas vezes — em cada palco, em cada trauma, em cada piano, em cada reinvenção estética. Naquele filme, Lady Gaga mostrou que sua alma é tão grande quanto sua voz — e isso é raro.
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No entanto, o espetáculo recente em Copacabana, transmitido em tempo real pela comoção nacional, revela mais do que o talento de uma estrela. Revela também um Brasil cansado. Um país faminto, injusto, anestesiado.
O argumento oficial — repetido à exaustão pelo prefeito Eduardo Paes e pela grande mídia — é que o show foi “gratuito”. Mas o gratuito tem um preço. E este custou milhões aos cofres públicos, que são abastecidos justamente pelos impostos cobrados daquele mesmo povo que, sob as luzes, o suor e a exaltação, delirava na areia. Um tesouro saqueado em nome de um êxtase coletivo. Um povo esfomeado de beleza, mas também de justiça.
Copacabana virou o Coliseu. Os corpos, espremidos, se agitavam como gladiadores de uma era anestesiada. A multidão ali estava não apenas para ver Lady Gaga, mas para esquecer que o Brasil registrou mais de R$ 6,5 bilhões desviados de aposentados pobres por meio de esquemas fraudulentos, envolvendo sindicatos e gestores públicos. O escândalo, abafado pelas luzes do palco, grita nos bastidores de uma sociedade que aplaude o espetáculo enquanto sangra.
O que seria do país se tamanha multidão se levantasse para defender seus direitos? Seríamos um barril de pólvora social — e, talvez por isso mesmo, nos ofereçam shows gratuitos. O circo é o mais eficaz dos calmantes.
Lady Gaga, é preciso dizer, não faz concessões fáceis ao erotismo vulgar das Madonnas e suas madonnetes. É uma artista maior. Quando senta ao piano e canta baladas ao estilo de Elton John, Gaga mostra o que é arte com alma. Suas composições carregam densidade, sensibilidade e uma inteligência emocional rara. Já a vi em entrevistas com declarações tocantes, de uma sensibilidade que me encantou profundamente. Ela tem a grandeza dos que não se perdem na fama.
Mas o que há de mais perturbador em tudo isso é o contraste: enquanto a Lady encanta, o país padece. Enquanto a artista voa, a nação rasteja. O talento de uma estrela global foi usado, consciente ou não, para encobrir a fúria dos desamparados, a dor dos invisíveis, a vergonha dos que ainda se importam.
O Brasil está em transe. Aplaude com as mãos enquanto é espoliado pelas costas. O som que se ouve é o da batida — não do tambor, mas do silêncio que cobre os gritos por justiça.
Lady Gaga foi magnífica. O show, impecável. Mas também foi o retrato mais cru da utopia governamental: enquanto a areia se enchia de luz, o povo seguia mergulhado na escuridão.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi delegado federal/Minc.
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