O inventor das capitais (II)

Por Jorge Henrique Cartaxo* e Lenora Barbo**

Três naus, duas caravelas e um bergatim. Seiscentos militares e 300 funcionários para a construção das novas estruturas públicas. Um médico, os primeiros padres, dentre eles o jesuíta Manoel da Nóbrega, um farmacêutico, o ouvidor-mor – responsável pela Justiça –, nobres e serviçais em geral.

Foi essa a delegação que desembarcou na Baía de Todos os Santos, em 29 de março de 1549, sob o comando de Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil, nomeado por Dom João III. Iniciava-se ali a construção de Salvador, primeira capital do Brasil colônia e o início do fim das capitanias hereditárias, inviáveis e desarticuladas. Coube ao arquiteto-militar Luiz Dias edificar a nova cidade, considerando seus aspectos administrativo, religioso e militar. Salvador nasce como representante da Coroa, com toda a autoridade administrativa e judicial para fazer valer o poder e os interesses da Corte portuguesa. Estavam ali as inspirações absolutistas com as capitais modernas em gestação: centralidade, símbolo e comando. Uma cidade portuária, numa posição militarmente estratégica entre o Nordeste e o Sudeste, com a função geopolítica de gerir, também, as atividades de exportação.

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As motivações que levaram Lisboa a fundar a cidade de Salvador, não foram exatamente as mesmas que levaram a Coroa a transferir a capital da colônia para o Rio de Janeiro, em 1763. Mas a centralidade, o comando e a geopolítica, sim. Com o domínio holandês no Nordeste (1630 e 1654) o tráfego da colônia para Portugal era feito, exclusivamente, pelo porto do Rio de Janeiro. Essa rota foi reforçada e ampliada, com a expansão da exploração do ouro na província de Minas Gerais. A colônia de Sacramento, na fronteira sul, reforçava a importância militar do porto.

Ao chegar em Salvador, em 22 de janeiro de 1808, Dom Joao VI teria ficado encantado com a estrutura da cidade e a calorosa e grandiosa receptividade. Considerou a possibilidade de ali estabelecer a nova capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815). Prevaleceu, entretanto, os termos do próprio Decreto Real de 1807 que justificava a partida da Corte para o Brasil e definia o Rio de Janeiro como a cidade-sede da família real. Havia ainda a decisiva pressão do governo inglês que considerava a cidade do Rio de Janeiro estrategicamente mais adequada para as expectativas sul-americanas (Argentina e Uruguai) da Grã-Bretanha, em busca de mercados para as suas indústrias em crescimento acelerado. Destaca-se também o Tratado de Methuen de 1703 — que assegurava a proteção militar inglesa a Portugal — e a convenção de 8 de novembro de 1807, que formalizava a segurança militar e naval inglesa ao príncipe regente e sua corte, durante a travessia de Lisboa para o Brasil. A contrapartida seria a abertura dos portos brasileiros para a Inglaterra. Em 8 de março de 1808, Dom João VI desembarca no Rio de Janeiro — não exatamente contente com a salubridade e o clima úmido do lugar — e decidiu transformar o sítio urbano numa cidade adequada para ser a capital da Coroa portuguesa.

Por coincidência ou não, surge com o desconforto de Dom João VI o debate sobre a necessidade da conquista do interior do país e a transferência da capital. No Parlamento Imperial dos Reinos Unidos da Grã-Bretanha, William Pitt, entre 1807 e 1808, propõe uma reorganização territorial do Brasil; o conselheiro brasileiro Antônio Rodrigues Veloso, em 1810, oferece uma monografia ao príncipe regente em que defende uma reocupação com a edificação de vilas e cidades pelo interior do país; e o jornalista Hipólito José da Costa, exilado em Londres e dirigindo o já prestigioso Correio Braziliense, propõe o deslocamento da capital para o Planalto Central.

“No centro da referida península se formará, ou se edificará, uma cidade, denominada Nova Lisboa, para a Corte, e o assento do imperador: da Nova Lisboa se abrirão estradas reais, que a maneira de rios, conduzirão da Nova Lisboa para Porto Bello, Pará, Rio de Janeiro, Olinda, São Salvador….”, imaginou Willam Pitt, no seu famoso pronunciamento no Parlamento inglês, certamente atento a uma nova geopolítica adequada aos interesses do império inglês, já em expansão. “A capital do império se deve fixar em lugar são, ameno, aprazível e isento do confuso tropel de gentes, indistintamente acumuladas, e onde a educação pública ache seu verdadeiro assento, recebendo do soberano aquela proteção sem a qual não poderá jamais produzir os frutos que lhe são naturais. Deve-se pesar bem esta matéria, quando se trata dos meios de povoar uma ou mais províncias do Estado; porque é interessantíssima e a mais importante de todas… é preciso que a Corte não se fixe em algum ponto marítimo”, recomendou Rodrigues Veloso, dirigindo-se ao príncipe regente.

“… Se os cortezões que para ali foram de Lisboa tivessem assaz patriotismo e agradecimento pelo país que os acolheu, fariam um generoso sacrifício das comodidades, e tal qual luxo que podem gozar no Rio de Janeiro, e se iriam estabelecer em um país do interior, central, e imediato às cabeceiras dos grandes rios; edificariam ali uma nova cidade, começariam por abrir estradas que se dirigissem a todos os portos marítimos e removeriam os obstáculos naturais que têm diferentes rios navegáveis, e lançariam assim os fundamentos ao mais extenso, ligado, bem defendido e poderoso império que é possível que exista na superfície do globo, no estado atual das nações que o povoam”, propugnou Hipólito José da Costa, certamente o primeiro brasileiro dos brasileiros na construção do Brasil moderno.

*jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHG-DF

**arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHG-DF

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