Apesar de ser uma função prevista na Constituição, apenas 4,8% dos promotores e procuradores do Ministério Público acreditam que fazer o controle externo das polícias é uma prioridade do órgão. O dado faz parte de uma pesquisa realizada pelas universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e estadual de Campinas (Unicamp) e que a Agência Pública obteve com exclusividade. Foram ouvidos 2.504 membros do Ministério Público da União e dos estados para investigar qual é o perfil e o que pensam esses agentes sobre variados assuntos.
Questionados sobre quais são as três áreas prioritárias de atuação do órgão, as respostas foram defesa do patrimônio público, combate à corrupção e improbidade administrativa (13,8%), defesa da criança e do adolescente (12,2%) e direitos humanos (8,7%).

Além disso, entre todas essas áreas, o controle externo — atividade de fiscalizar as polícias — foi a pior avaliada pelos promotores e procuradores. A atividade foi classificada por quase um terço dos ouvidos como em situação “regular” (31,5%), seguida de “boa” (30,6%). Por outro lado, promover ações penais teve a melhor posição, considerada “boa” por 46,1%.
Por que isso importa?
- Pesquisa obtida com exclusividade pela reportagem mostra que menos de 5% dos promotores e procuradores do Ministério Público acreditam que fiscalizar as polícias seja uma prioridade do órgão;
- “Não ter o controle externo como prioridade enfraquece a fiscalização”, diz especialista
Professora da UFMG e uma das coordenadoras da pesquisa, Ludmila Ribeiro já tinha investigado as opiniões dos membros dos MPs há 10 anos e entende que houve pouco avanço de lá para cá. Para ela, as respostas indicam que os promotores e procuradores preferem fazer acusações criminais e, como dependem do trabalho das polícias para isso, vão se sentir pouco confortáveis em abalar essa relação caso apurem possíveis abusos ou violações de direitos cometidos numa prisão feita pela Polícia Militar, ou no curso de uma investigação conduzida pela Polícia Civil, por exemplo.
“Se ele [o MP] começar a ser muito rígido no controle externo da atividade policial, ele vai ver que quase tudo que chega como crime é resultado de ilegalidades cometidas pela polícia”, afirma. “Ou seja, se fizer um controle externo muito rigoroso, vai ser muito difícil conseguir ter muitas ações penais. E o que o promotor quer é muita ação penal para poder condenar bastante e também para não ter que atuar em outras áreas”.
Os dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) reforçam essa preferência pelo combate à corrupção. Dos mais de 17 mil Procedimentos Investigatórios Criminais (PICs) instaurados em 2023, 19% tratam de crimes contra a ordem tributária, contra a lei das licitações, organização criminosa, peculato etc, por exemplo. Já entre os inquéritos civis, dos mais de 50 mil instaurados no ano, crimes contra o meio ambiente (39,2%), improbidade administrativa (27,8%) e ordem urbanística (9,7%) são os principais.
Em ambos os casos são apurações abertas exclusivamente pelos MPs de forma extrajudicial. A Pública solicitou informações mais detalhadas dessas apurações via Lei de Acesso à Informação, mas o CNMP respondeu que apenas recebe as informações consolidadas dos órgãos estaduais sem detalhamento. A área de dados para controle externo da atividade policial do conselho não indica inquéritos e procedimentos abertos e traz apenas números sobre inspeções realizadas em delegacias de Polícia Civil e órgãos de perícia técnica.
Ribeiro alerta que não considerar o controle externo como uma prioridade contribui para enfraquecer a fiscalização. “A gente vê isso especialmente na audiência de custódia. Se a pessoa [que é vítima] alegou violência policial, o que o promotor faz? Ele entra com um ofício para a corregedoria [da polícia] e isso morre ali. Isso é visto como controle externo da polícia”, exemplifica.
O Ministério Público é a instituição responsável por fazer as acusações criminais. Durante a constituinte, o órgão pleiteava ter o monopólio da investigação penal, mas a Polícia Civil também recebeu essa atribuição, explica Paulo Roberto Mello Cunha Junior, promotor da Auditoria da Justiça Militar e subcoordenador do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público do Rio de Janeiro (GAESP-MPRJ). “O MP nunca quis fazer controle externo da atividade policial”, diz.
Ele aponta que o controle externo foi criado a fim de manter os interesses do MP como “dono” da ação penal. Acontece que, desde a constituinte, o órgão ganhou várias outras atribuições na perspectiva de fiscal da lei e da garantia de direitos.
“O país saía de uma ditadura com mortos e desaparecidos por isso você precisava de uma instituição que tivesse autonomia e que zelasse pelos direitos fundamentais, tentando evitar que aquilo se tornasse uma permanência, que desse continuidade da violência que foi observada na ditadura militar”, explica Rafael Rodrigues Viegas, professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP) e pesquisador da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), onde estuda a atuação de órgãos de controle.
Ele explica que também houve um lobby das associações de classe a fim de ampliar as atribuições do órgão. Porém, a Constituição de 1988 e legislações sobre o assunto não definem que áreas devem ser priorizadas em detrimento de outras nem com relação a recursos públicos. “O orçamento da instituição tem sido drenado, na verdade, mais para contracheques dos membros, que são os promotores e procuradores, do que para a estrutura do Ministério Público, com contratação de servidores e técnicos”, critica.
Viegas avalia que como os governadores têm o poder de ampliar as verbas dos MPs por decreto, por exemplo, escolhendo os Procuradores-Gerais de Justiça por lista tríplice e que, além de tudo, chefiam as polícias, a independência do Ministério Público é questionável. “Essa lista [tríplice] representa interesses corporativos da classe, o que está diretamente relacionado ao orçamento do Ministério Público. Então, você não vai observar a atuação do Ministério Público diretamente contra o governador e seus secretários de Estado”, analisa. “A gente vai ver mais atuação do MP estadual em cima de prefeito, de gestores municipais, principalmente”.
Para Viegas e os demais pesquisadores, a agenda anticorrupção tem sido potencializada pela imprensa, especialmente após a Operação Lava Jato.
“Cada vez mais a gente observa, com a criação de GAECOs [grupos especializados de combate à corrupção nos MPs], o Ministério Público explorando não só essa agenda anticorrupção, mas questões que têm apelo midiático, apelo social, com operações policiais, coisa bem policialesca mesmo, de arrebentar a porta, de aparecer helicóptero 6h da manhã na casa das pessoas, e que passa a ideia de um retorno social, passa a ideia de ‘estamos trabalhando’”, aponta Viegas.
Estados com mais violência policial têm as piores notas
A pedido da Pública, a professora Ludmila Ribeiro comparou as avaliações do controle externo nos estados de atuação dos promotores e procuradores que responderam o questionário. Rio de Janeiro (média de 2,72), Bahia (2,76) e Goiás (2,77) lideram o ranking com as piores notas e, coincidentemente, também integram a relação dos oito estados com as maiores taxas de letalidade policial por 100 mil habitantes, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024.
A pesquisa também questionou os promotores e procuradores sobre qual a posição deles em relação à presunção de legítima defesa do policial militar que se envolvia em mortes. Apesar de a maioria (53,6%) discordar em alguma medida, chama a atenção que quase 30% demonstram apoio parcial ou integral.
Para Ribeiro, os resultados mostram que os membros dos MPs reconhecem o problema, mas sustentam um corporativismo associado a um senso comum da sociedade de que “bandido bom é bandido morto”.
“É uma instituição que quer o tempo todo se proteger de críticas externas. E se proteger de críticas externas, muitas das vezes, significa não colocar a mão em problemas espinhosos, como é o caso do controle externo da atividade policial”, afirma.

“Tem outra questão que é a pessoa que estuda, faz o concurso [do MP] e passa, normalmente, é uma pessoa de classe média, branca, que dificilmente já tomou uma ‘dura’ da polícia, que já foi esculachado pela polícia”, diz o promotor Paulo Júnior.
Ele avalia que o desenho institucional dos MPs também influencia. “Ele não investiga, não tem uma polícia técnica. MP não vai para rua, não tem viatura”, aponta. “Então, você imagina uma relação em que você depende de alguém e, ao mesmo tempo, você é a pessoa que tem que promover a punição: é uma relação que acaba ensejando muitos conflitos de interesse”.
A Pública ouviu, sob anonimato, promotores de diferentes localidades que relataram que fiscalizar a polícia é uma tarefa difícil, especialmente em cidades mais afastadas das capitais, mesmo que não tenham elevados casos de letalidade policial. Primeiro porque no interior os promotores acabam assumindo muitas funções, sendo responsáveis por ações que vão desde a falta de pagamento de pensão alimentícia a homicídio.
Eles também relataram ameaças por forças policiais. “Já aconteceu de eu ser ameaçada por um policial civil que denunciei por corrupção”, disse uma promotora. Outro promotor, que já atuou em júris nos quais os acusados eram policiais, contou que uma vez, após o julgamento encerrar com uma condenação, percebeu uma viatura seguindo seu carro por um longo trecho na volta para casa. “Na época, eu não denunciei, mas vi como uma intimidação”, lembra.
Eles dizem que não há uma cumplicidade do órgão com a letalidade policial e sim uma dificuldade de reunir provas suficientes para fazer uma acusação. Os promotores afirmam que é uma investigação mais complexa por se tratar de um agente que já sabe o que pode incriminá-lo e que geralmente os policiais são as únicas testemunhas do caso, devido ao medo das pessoas em denunciá-los.
Apesar disso, os promotores ouvidos pela reportagem afirmam que as câmeras corporais têm sido uma ferramenta importante nesse processo.
Grupos especializados
Criar núcleos, grupos ou promotorias especializadas no controle externo da atividade policial tem sido uma saída para driblar o problema da fiscalização das polícias.
O CNMP tratou pela primeira vez do assunto na Resolução nº 20/2007, quando recomendou que a atividade poderia ser exercida de forma difusa (por todos os membros) ou concentrada (quando há promotores específicos para essa atividade que podem ou não acumular outras funções) a ser definida por cada MP. O texto só foi atualizado profundamente em 2023, com a Resolução nº 279, trazendo perspectivas de raça, gênero e sexualidade, além de fomentar políticas públicas aptas à redução da letalidade e da vitimização policiais, como cobrar transparência de indicadores e protocolos de ação.

Contudo, as normativas do CNMP são recomendações e os MPs podem optar por seguirem ou não. A Pública questionou em janeiro, via Lei de Acesso à Informação, os MPs federal e estaduais sobre a existência de estrutura especializada exclusiva sobre o assunto. Dos 17 órgãos que responderam até 25 de março, 11 indicaram a presença de pelo menos um núcleo, grupo e/ou promotoria voltada para a fiscalização das polícias (não foram consideradas as promotorias de Auditoria Militar neste caso). A maioria foi criada ou reformulada após 2020 e não há critério definido sobre quantos promotores devem atuar.
Rafael Viegas, da ENAP, diz que essas estruturas ficam à mercê da vontade política do Procurador-Geral da Justiça que está à frente da instituição e pode extinguir o grupo, como aconteceu no Rio de Janeiro, onde o GAESP foi extinto em 2021 e recriado apenas agora em 2025.
Além disso, mesmo quando existem grupos especializados não significa que toda morte provocada pela polícia vai ser investigada, já que essa estrutura não pode interferir na competência inicial das promotorias locais. Ou seja, se um crime aconteceu em determinada comarca (que pode conter uma ou mais cidades), a apuração é de responsabilidade do(a) promotor(a) que atua na região.
Crimes dolosos contra a vida devem ser julgados pelo Tribunal do Júri, logo são promotores dessa área que atuam nas ocorrências de mortes provocadas pelas polícias e de mortes de policiais.
No Distrito Federal, por exemplo, há um núcleo específico para o controle externo da Polícia Civil, um para o sistema prisional que abarca a Polícia Penal e as promotorias militares, que são responsáveis pela Polícia Militar. Essa última investiga apenas crimes militares e pode, eventualmente, atuar em conjunto com outros grupos.
“Eu acho que a partir do momento em que outras unidades federativas e outros Ministérios Públicos dos estados, diante das suas realidades próprias, designarem promotores de número suficiente para a realização dessa atividade, haverá um incremento, uma melhoria nesse controle externo”, diz Flavio Milhomem, que é promotor da Auditoria Militar do MPDFT.
O Ministério Público do Amapá (MPAP), por exemplo, não tem estrutura especializada, mesmo o estado sendo líder há anos da taxa de violência policial. Em 2021, quatro Promotorias de Justiça de Investigações Cíveis, Criminais e de Segurança Pública de Macapá foram extintas para abarcar diversas temáticas criminais. A capital dispõe de duas promotorias voltadas a crimes militares.
Investigações paradas nas mãos do MP
Um dos raros casos onde houve acusação de policiais pelo MPAP ainda segue sem solução. Em maio de 2014, Marlon dos Santos Araújo, de 22 anos, morreu afogado após ter sido submetido a tortura e obrigado por policiais militares a pular no Rio Amazonas, em Macapá. No processo, a história é contada por dois sobreviventes.
Eles dizem que encontraram Marlon em um comércio, quando foram abordados por uma viatura da PM. Apesar de nada de ilícito ter sido encontrado, um dos policiais teria passado a mexer no celular de um dos sobreviventes e questionado se eles tinham envolvimento com tráfico de drogas, o que negaram.
Os três rapazes foram colocados no porta-malas da viatura e levados a uma base desativada do 6º batalhão. Ali, dizem os sobreviventes, foram alvo de chutes, socos e golpes de cassetete e de vassoura a fim de que confessassem uma suposta relação com o crime organizado. Como nenhum deles confessou nem tinham antecedentes, foram levados até a Orla do Perpétuo Socorro, na beira do rio Amazonas, onde foram obrigados a pular na água. De acordo com os sobreviventes, a maré estava alta e Marlon não sabia nadar. Eles tentaram salvá-lo, mas disseram que os policiais jogaram pedras e bombinhas para impedir o socorro.

Os dois amigos conseguiram fugir para casa de parentes, que também relatam terem sido agredidos pelos policiais. O corpo de Marlon só foi encontrado mais de oito horas depois.
Durante oito anos, o MP e o Judiciário amapaense disputavam se a atribuição do caso era da esfera militar ou da vara do júri, por conta de uma interpretação da Lei 13.941/2017 que ampliou a competência da Justiça Militar para julgar crimes de militares praticados contra civis.
Só em 2023, a Promotoria do Júri de Macapá pediu que o caso de Marlon fosse reconhecido como crime de homicídio qualificado por recurso que dificultou a defesa da vítima, já que a tortura foi intencional e contribuiu para a morte do rapaz. Além disso, também acusou os policiais por tentativa de homicídio contra os dois sobreviventes. Hoje o processo está em fase de audiências na Justiça Comum para ser decidido se os PMs irão ou não a júri popular. Por outro lado, os crimes de lesão corporal e violação de domicílio contra os parentes dos jovens prescreveram e parte dos PMs envolvidos já se aposentou da carreira.
A Pública procurou os sobreviventes e familiares de Marlon, mas todos optaram por não dar entrevista.
Já a assessoria do MPAP disse que a extinção das promotorias foi uma recomendação da Corregedoria Nacional e da Geral do órgão, sendo que as atribuições foram absorvidas por 10 promotorias de justiça criminais para agilizar as demandas.
Também afirma que investiu em “pessoal e tecnologia de ponta” a partir da criação de um Centro Integrado de Investigação e Inteligência no MP e que apura todas as mortes as quais justificou que “se dão, em sua maioria, pelo confronto armado com membros de organizações criminosas”.
Sobre o caso de Marlon, informou que está em fase de audiências e que “sempre que recebe denúncia ou inquérito apontando conduta policial contrária à sua atividade de promover a segurança pública, principalmente dos cidadãos, age de acordo com a lei, investigando e denunciando, quando é o caso, como no processo citado pela reportagem”.
Em outro caso, na Bahia, o assassinato de Pedro Henrique Santos Cruz Sousa, morto aos 31, segue parado nas mãos dos promotores que ainda não decidiram se vão denunciar dois policiais militares apontados pela Polícia Civil como autores do crime ou arquivar o caso. “A gente não sabe o que está acontecendo. A impressão que eu tenho é que estão levando o caso em ‘banho-maria’. Não sei se é para cair no esquecimento ou é para o tempo passar”, lamenta a professora Ana Maria Cruz, de 59 anos, mãe de Pedro.
Sousa já tinha denunciado abusos da PM ao MPBA, que não foram investigados até ser morto a tiros dentro de casa, em Tucano, a 252 km distante de Salvador, em 2018. O Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública (GEOSP) só abriu apuração sobre essas denúncias após a morte do jovem negro, quando assumiu o inquérito em 2021 devido à insistência da família e a repercussão que o caso teve. Todas as representações foram arquivadas pouco tempo depois.

A morosidade de um desfecho foi cobrada em uma campanha da Anistia Internacional e agora está sendo questionada pela Procuradoria-Geral da República, que pediu esclarecimentos após ter sido provocada por uma denúncia em fevereiro. Há poucas semanas, a Defensoria Pública também denunciou o Estado da Bahia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela impunidade do caso.
À Pública, o MPBA não respondeu aos questionamentos sobre o andamento do inquérito.
Coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Samuel Vida entende que há um alinhamento político à lógica de enfrentamento que há 18 anos é comandada por gestões petistas na Bahia. “Há uma atitude de não exercer a necessária autonomia e independência para investigar as políticas governamentais e isso tem se traduzido numa cumplicidade com a ação policial ilegal”, diz. “O Ministério Público segue absolutamente inerte e isso não pode ser considerado como uma falha operacional, essa é uma decisão política que tem que ser cobrada”.