Whisner Fraga
Especial para o Jornal Opção
Classificar o livro “O Caldeirão da Velha Chica e Outras Histórias Brasileiras” (Folhas de Relva, 284 páginas), de Alexandre Staut, como um livro de gastronomia é reduzir de maneira brutal o que a obra verdadeiramente representa. É muito mais, talvez seja menos sobre culinária do que cultura, em um sentido amplo, e isso é tão óbvio que basta uma folheada nas primeiras páginas para constatar. Aliás, basta a Nota do autor: “viajei o Brasil de Norte a Sul em busca da sabedoria popular sobre nossa vasta cultura”. Se o leitor ainda não estiver satisfeito, é bom acrescentar que as histórias foram finalistas do prêmio de não ficção latinoamérica independiente.
Então, do que se trata? Recorrendo novamente ao autor: “Essencialmente de história oral”. Alexandre Staut reuniu depoimentos de mais de quarenta entrevistados, entre 2006 e 2013, organizou esse material e escreveu um “livro que traz um olhar pessoal sobre a gastronomia brasileira através do olhar do outro”. Mas o que isso quer dizer? Que o autor reconfigurou a oralidade, as muitas histórias registradas, transformando-a em literatura. Para tanto, é claro, que essas vozes foram filtradas pelo ouvido experiente de Staut e transformadas em texto, em símbolos escritos. Aqui residia o maior risco do livro: como transverter esses sons tão interessantes em um texto igualmente intrigante. É aí que entra em cena o talento de um bom escritor.
A narrativa é fluida, as frases são rápidas, certeiras, o leitor fica hipnotizado com tudo o que encontra nas páginas do livro. Dividido em cinco partes, começa com a cultura dos povos originários, a visão de uma chef magro-grossense, segue com os povos africanos, faz um belo passeio pelo sagrado e pelo profano, aborda a herança deixada pelos imigrantes e termina com uma ficção sobre o futuro da alimentação. Importante ressaltar a técnica escolhida, capaz de transformar relatos orais em relatos tão saborosos: as histórias foram escritas a partir dos relatos. Ou seja, não são meras transcrições das entrevistas, são recriações.

Em alguns momentos, com justo receio de usurpar um lugar de fala, transcreve os depoimentos. Ainda nesses casos, os relatos são eficientes. Mas como Staut conseguiu isso? Usando os recursos da produção textual: escolhendo trechos, refletindo sobre as informações, usando paráfrases, quebras inteligentes de parágrafos, descrições, diálogos indiretos, intertextualidade, por exemplo. Na segunda parte, essa escolha é predominante. Staut a inicia transcrevendo a entrevista com uma quilombola, rapidamente transformada em um diálogo com o próprio autor, um diálogo rico – e apetitoso.
Staut passeia por diversas regiões e estados, Espírito Santo, São Paulo, Minas Gerais, Pará, Amazonas, sempre relacionando o ato de preparar comidas a uma atividade política. Desde a escolha de temperos até a maneira de servir, tudo é político. Não no combalido sentido partidário, mas naquele mais amplo, um pouco esquecido em nossa sociedade. Às vezes, claro e inevitavelmente, o autor trata de instâncias governamentais, de outras, sem conexão com instâncias de poder, mas o faz sempre com o objetivo de contextualizar e de mostrar que a simples escolha de um determinado alimento também é mediada pela economia, pelo poder público, além, obviamente, das questões culturais e sociais.
Alexandre Staut se aproveita da experiência como repórter de política e como crítico gastronômico para trazer curiosidades sobre o mundo da culinária neste original Caldeirão da Velha Chica. Você já imaginou, por exemplo, como seria a cozinha de um bordel? O que era servido ali? Existe uma culinária específica do candomblé? O que ela teria de diferente? Uma padaria que produz pães deliciosos pode ser um local macabro, palco para graves delitos de uma organização criminosa? Como se pode notar até aqui, não se trata mesmo de um livro de receitas, nem de curiosidades da cozinha brasileira e isso, certamente, amplia o público da obra.
Por ser eclético, amplo, uma jornada pela arte de narrar, este Caldeirão de verdadeira cultura não poderia deixar de fora a novela da quarta parte. Depois do que leu antes, o leitor está pronto para ela. A distopia apresentada em formato de diário revela um ficcionista seguro, que traz uma linguagem lírica, limpa, para contar sobre um Brasil do futuro encarando o esgotamento dos recursos naturais.
As riquíssimas tradições do povo brasileiro, representadas em “O Caldeirão da Velha Chica” por sociedades e territórios diversos, vem mostrar ao leitor a importância de se valorizar os costumes e reconhecer que a culinária é muito mais do que o simples ato de preparar alimentos – é memória, identidade e resistência. Alexandre Staut nos conduz por um Brasil de múltiplas vozes, onde cada história contada carrega séculos de costumes e transformações. O autor não apenas registra, mas recria experiências, tornando-as acessíveis a novos olhares e interpretações. Definitivamente, este não é apenas um livro sobre comida, mas um convite para refletirmos sobre um país e como as tradições alimentam, literal e simbolicamente, o futuro.
Whisner Fraga é professor e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, entre eles usufruto de demônios (finalista no Prêmio Jabuti em 2023) e o recém-lançado as fomes inaugurais. Tem contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.
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