O dia em que a cidade se esqueceu de amar

Por Flávio Chaves*

Naquele dia, ninguém percebeu – mas algo grave aconteceu.

Não caiu um avião, não desabou um prédio, não houve terremoto. O que houve foi mais sutil, mais insidioso, mais devastador: a cidade se esqueceu de amar.

Não houve sirenes. Nenhuma ambulância cortou as avenidas, nenhum jornalista interrompeu a programação para anunciar o colapso.

Mas havia uma ausência no ar – como se o vento tivesse perdido a memória das carícias.

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Os camelôs gritavam suas ofertas com uma raiva cansada. Os ônibus passavam com rostos colados aos vidros, cada um com sua solidão plastificada.

Na fila do banco, ninguém cedia o lugar. Nos corredores dos hospitais, ninguém consolava ninguém.

Os cafés estavam cheios de gente – e completamente vazios de conversa.

As crianças nas escolas aprendiam a tabuada, mas não mais a ternura.

Os professores estavam exaustos demais para ensinar gentileza.

Os velhos nas janelas não acenavam. E os cachorros latiam para o nada.

Os casais discutiam no sinal vermelho.

Os jovens deslizavam os dedos nas telas, buscando companhia sem saber que procuravam amor.

E os pássaros, como se intuíssem o luto, voavam mais baixo, mais lentos, como se procurassem abrigo num chão sem alma.

Em algum bairro esquecido, uma senhora de nome Maria lavava a calçada com os olhos vermelhos.

Dizia, para ninguém, que o mundo estava mais duro que os joelhos dela.

Tinha um pé de jasmim que insistia em florir mesmo sem cuidado.

Talvez o amor seja isso – a última flor que resiste entre os escombros da pressa.

Os jornais daquele dia noticiaram o dólar, a eleição, a alta da carne, a violência nas madrugadas.

Mas ninguém registrou que o amor havia faltado ao expediente.

E no fim da tarde, enquanto a cidade se enchia de luzes artificiais, um menino chamado Théo, sozinho no escuro do seu quarto, escreveu num papel amassado:

“Se alguém ainda souber amar, por favor, me ensine.”

Colou o bilhete no portão de casa, como quem tenta salvar um planeta com uma prece feita de giz de cera.

Porque talvez – talvez – nem tudo esteja perdido.

Talvez ainda haja quem se lembre.

Talvez o amor, mesmo ferido, saiba o caminho de volta.

*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras

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