A sucessão papal é sempre um momento de expectativa, tensão e especulações — não apenas para os católicos, mas para toda a sociedade global. Com a iminente saída de cena do Papa Francisco, um dos pontífices mais transformadores das últimas décadas, cresce o temor de que sua sucessão represente uma ruptura não com os excessos do passado, mas com os avanços sociais, morais e pastorais de seu pontificado.
Francisco foi ousado: enfrentou tabus, falou com os pobres, acolheu os marginalizados, denunciou abusos históricos da Igreja e defendeu uma fé viva, em diálogo com o mundo. Se em seu lugar surgir um líder de perfil ultraconservador — fechado ao diálogo, hostil à diversidade e alinhado a interesses políticos e econômicos elitistas — o risco é de uma regressão teocrática disfarçada de fidelidade doutrinária.
Uma Igreja em chave de reforma
Desde 2013, o Papa Francisco promoveu reformas sem romper com a essência tradicional da fé. Sua pastoral é marcada por uma compaixão ativa e uma abertura ao mundo, sem renegar os pilares do catolicismo. Ele enfrentou o silêncio institucional em temas como a acolhida à comunidade LGBTQIAPN+, a responsabilização da Igreja nos casos de abuso sexual e a crítica à guerra e à desigualdade.
Entre suas ações mais relevantes estão:
- Nomeações de mulheres para cargos de liderança no Vaticano;
- Revisões no Código de Direito Canônico com criminalização explícita da pedofilia;
- Combate ao clericalismo e ao autoritarismo;
- Foco em questões sociais globais como migração, meio ambiente e justiça econômica;
- Estilo de vida pessoal austero, recusando os luxos tradicionais da Cúria.
Esse último ponto simboliza uma mudança radical de paradigma. Em suas palavras: “O sepulcro deve estar na terra; simples, sem ornamentos especiais, e com a única inscrição: Franciscus”. A frase, de Jorge Mario Bergoglio, sintetiza a coerência entre sua vida, suas ideias e sua visão de Igreja.
Mesmo com esse perfil reformista, Francisco manteve os dogmas centrais: o celibato, a exclusividade masculina no sacerdócio, a liturgia tradicional. Sua força não esteve em destruir, mas em purificar. Reformou sem romper.
O medo do retrocesso
O problema de um possível novo papa extremista não seria o retorno à tradição, mas
a promoção de uma teologia de exclusão. Uma liderança autoritária, clericalizada e
distante da realidade social colocaria a Igreja em rota de colisão com os anseios
contemporâneos por justiça, compaixão e diálogo.
Há um risco real de que se reforce uma espiritualidade elitista, usada como ferramenta
de poder e dominação. Em vez de ser ponte de reconciliação, a fé pode ser
transformada em trincheira ideológica — servindo a discursos de ódio, nacionalismos
e regimes autoritários.
A manipulação do discurso religioso para legitimar desigualdades, acumular riquezas e
justificar imperialismos — sejam ocidentais ou orientais — ameaça a integridade moral
da instituição. O uso da fé como arma de desinformação, repressão e controle não é
um risco abstrato, mas uma realidade já em gestação.
Um legado de serviço
O legado de Francisco está na coragem de encarar as feridas da Igreja e do mundo
com empatia. Mostrou que é possível manter a doutrina e, ao mesmo tempo, ser
humano. Deixou claro que uma Igreja trancada em seus palácios perde a essência do
Evangelho, que sempre esteve nas ruas, entre os pobres, nas margens.
A sucessão papal representa, portanto, uma encruzilhada. A escolha não é apenas
entre dois cardeais, mas entre duas visões de Igreja: uma voltada para o mundo, outra
voltada para si mesma. Uma voltada para o serviço, outra para o poder. Uma viva,
outra fossilizada.
Como disse o próprio Francisco: “Apenas os que dialogam podem construir pontes e
vínculos”. É essa ponte que pode ruir caso a Igreja ceda à tentação do autoritarismo
travestido de ortodoxia.
O futuro da fé católica depende da coragem de continuar servindo. Porque, no fim, não
será a pompa dos tronos, mas a simplicidade das sandálias, que mostrará de que lado
está o Evangelho.
Por Diego Patricio Flores — Filósofo e mestre em Ciências Políticas
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