Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Mais do que um centro cultural e artístico, a Fundação Calouste Gulbenkian é um testemunho do legado de um homem que soube unir poder econômico e paixão pela arte. Entre os muitos tesouros culturais de Lisboa, ela destaca-se como um oásis de beleza, conhecimento e inovação, refletindo a trajetória de seu fundador, cuja influência na indústria petrolífera moldou economias e redefiniu fronteiras políticas. Ocupando uma vasta área na capital portuguesa, este espaço combina natureza e arquitetura de maneira harmoniosa, oferecendo aos visitantes uma experiência sensorial única. Os jardins, projetados para evocar uma sensação de serenidade, estendem-se em paisagens de vegetação exuberante, lagos tranquilos e recantos sombreados que convidam à contemplação. Caminhar por suas alamedas é perder-se em um refúgio onde a arte natural dialoga com a intervenção humana.
No coração deste complexo, ergue-se o Museu Calouste Gulbenkian, um verdadeiro santuário da arte. Seu acervo, reunido com apurado senso estético e histórico, percorre séculos de cultura humana, da Antiguidade ao Modernismo. Entre as preciosidades, destacam-se peças da arte egípcia, islâmica, persa, chinesa e europeia, revelando um panorama global do engenho humano. Obras de Rembrandt, Rubens, Monet e Lalique repousam em salas organizadas com meticuloso cuidado, proporcionando uma viagem pelo tempo e pelo espírito criador.
Antes de se tornar um dos mais importantes mecenas do século XX, Gulbenkian desempenhou um papel crucial na indústria petrolífera, sendo peça-chave na articulação de acordos que moldaram o setor energético global. Sua habilidade em negociações e sua visão estratégica permitiram que acumulasse uma fortuna considerável, a qual, posteriormente, destinou à arte e à cultura. Assim, a Fundação Calouste Gulbenkian não se limita ao museu; ela reflete a dualidade de seu fundador, unindo o pragmatismo dos negócios à paixão pelo conhecimento e pela preservação do patrimônio cultural. Seu Centro de Arte Moderna acolhe exposições temporárias e um acervo dedicado à arte contemporânea portuguesa. Além disso, o auditório da Gulbenkian ressoa com os sons de concertos eruditos, óperas e conferências, atraindo músicos e intelectuais de todo o mundo. A biblioteca, repleta de volumes raros e espaços de estudo, é um refúgio para pesquisadores e leitores ávidos. Em cada canto, percebe-se o compromisso com o conhecimento, a beleza e a preservação cultural.

Contudo, por trás de toda essa grandiosidade, esconde-se a figura enigmática de um homem cuja visão moldou este legado. A resenha ora em desenvolvimento busca lançar luz sobre Calouste Sarkis Gulbenkian, o misterioso armênio que construiu uma fortuna colossal no setor petrolífero e, com uma sensibilidade ímpar, destinou parte de seus recursos para a criação deste espaço de excelência.
Sua trajetória, marcada por sagacidade nos negócios e paixão pela arte, transformou-o em um dos maiores mecenas do século XX. Além de seu papel como colecionador e patrono das artes, Gulbenkian foi um dos mais expressivos produtores de petróleo do mundo, influenciando o cenário energético global. Esta resenha pretende explorar as diversas facetas desse magnata, desde suas origens na Armênia até seu impacto duradouro na indústria e na cultura.
Entender a Fundação é, portanto, compreender não apenas seu legado artístico e intelectual, mas também o papel central de Gulbenkian na geopolítica do petróleo e sua visão singular que o fez transitar entre os mundos dos negócios e da filantropia. Assim, esta análise buscará revelar as múltiplas partes que compõem o todo da vida desse extraordinário personagem da história mundial.
Perseguição aos Armênios no Império Otomano e a Humilhação de Sarkis: Um Relato do Livro O Homem de Constantinopla
Durante o Império Otomano, a discriminação contra os armênios era uma realidade constante, mesmo para aqueles que ocupavam posições de destaque econômico e social. Apesar de sua influência nos negócios e do papel crucial na economia do império, os armênios eram frequentemente alvos de preconceito e violência por parte das autoridades turcas.

O livro “O Homem de Constantinopla”, do escritor português José Rodrigues dos Santos, retrata de forma vívida essa discriminação, expondo episódios de humilhação e brutalidade contra a comunidade armênia. Um dos momentos mais impactantes da obra envolve Sarkis Gulbenkian, um próspero homem de negócios e líder armênio da comunidade local , que, apesar de sua posição privilegiada, foi publicamente humilhado por oficiais turcos.
Na cena descrita pelo autor, Sarkis Gulbenkian é forçado a se retratar perante um oficial otomano sob a ameaça da chibata. Mesmo sendo um homem influente e respeitado, ele não pôde resistir à brutalidade de seus algozes. O trecho do livro resume de forma contundente a humilhação sofrida pelo empresário:
“A chibata estalou mais uma vez sobre a cabeça da vítima, incapaz de fazer frente àqueles homens. Sarkis Gulbenkian cedeu, e o poderoso vali de Trebizonda, líder do Millet(comunidade) armênio local e homem de negócios bem-sucedido, com excelentes contatos, caiu, enfim, de joelhos.”
O episódio só teve fim quando os oficiais turcos, satisfeitos com a humilhação imposta, deixaram o local rindo da cena. Apenas então Sarkis pôde ser socorrido, um retrato fiel do desprezo com que os armênios eram tratados no Império Otomano, independentemente de sua posição social ou econômica.
A cena descrita em “O Homem de Constantinopla” reforça a brutalidade das perseguições sofridas pelos armênios e lança luz sobre a discriminação sistemática que marcou esse período da história. No decorrer desta resenha, apresentaremos mais detalhes sobre a obra e seu autor, José Rodrigues dos Santos, um dos escritores contemporâneos mais proeminentes de Portugal.
Sólida educação de Calouste Gulbenkian
O personagem principal do romance, Calouste Gulbenkian, era um jovem de origem armênia, filho do magnata Sarkis Gulbenkian, um dos homens mais ricos de Constantinopla. Desde a infância, cresceu cercado pelo luxo e pelas exigências de um destino grandioso, moldado pela ambição e pelos valores de seu pai. Inteligente e observador, Gulbenkian desde cedo aprendeu que o mundo dos negócios exigia astúcia e discernimento, lições que lhe seriam de grande valia no futuro.
Quando ainda era um menino curioso, ele visitou o maior templo de consumo de Constantinopla, o Grande Bazar. Lá ele ficou fascinado pelo esplendor dos bazares repletos de mercadorias exóticas e comerciantes perspicazes.
A respeito dessa emoção incontida do filho de Sarkis Gulbenkian, o autor relata que esse templo ao consumo Turco é uma cidade dentro de outra cidade. Calouste , de tanto entusiasmo, chegava a perder a respiração com o que via.
“Em Homem de Constantinopla”, o autor e assim descreve a atmosfera do Grande Bazar: “ o Grande Bazar era uma cidade, um labirinto de comércio e artérias sob um teto abobadado onde os vendedores interpelavam o rio de gente que se acotovelava nos corredores coloridos. “Olha os cachimbos!” gritava uma voz. “Belos cachimbos!”. “Prata! Ouro! Pedras preciosas. “Nessa loja, o cliente é um sultão!”
Foi ali que teve sua primeira grande decepção: ao negociar a venda de uma moeda valiosa, foi ludibriado por um astuto mercador, que lhe pagou um valor irrisório pela peça. O episódio marcou profundamente Calouste, ensinando-lhe de maneira dura a importância da sagacidade nos negócios e da prudência ao lidar com negociantes experientes.
Apesar desse deslize juvenil, sua formação intelectual foi cuidadosamente planejada por seu pai, que o incentivou a estudar nas melhores escolas da Turquia. Calouste teve acesso a uma educação de elite, recebendo ensinamentos que o preparariam para um futuro promissor. Entretanto, o pai dele sabia que apenas a instrução turca não bastaria para moldar um homem de negócios à altura de sua família. Por isso, decidiu enviar o filho dele para a França, onde ele daria continuidade a seus estudos.
A chegada à França foi um choque cultural. Acostumado aos costumes conservadores de sua terra natal, Calouste estranhou a liberdade sexual que permeava a sociedade francesa. Para ele, era inconcebível que as relações entre homens e mulheres ocorressem de maneira tão aberta, em contraste com a discrição que predominava na Turquia. No entanto, foi em solo francês que ele teve sua primeira experiência íntima, iniciando-se no sexo com uma de suas professoras. O episódio, além de marcar sua transição para a vida adulta, tornou-se um dos primeiros indícios de sua adaptação ao mundo ocidental.
Sempre atento ao comportamento do filho, Sarkis Gulbenkian tomou uma nova decisão: enviá-lo para a Inglaterra. Lá, Calouste ingressou na prestigiada Universidade de Londres, onde formou-se engenheiro. A experiência britânica foi determinante para sua trajetória, consolidando sua formação e ampliando seu conhecimento sobre as engrenagens do mundo industrial e empresarial.
A educação impecável que recebeu em três dos mais importantes centros intelectuais da Europa foi decisiva para o sucesso de Calouste em sua vida profissional. Combinando sua astúcia nata com os ensinamentos adquiridos, ele trilhou um caminho de glórias e desafios, tornando-se um dos homens mais influentes de sua época. Seu nome, que um dia foi apenas o de um jovem encantado pelos bazares de Constantinopla, viria a figurar entre os grandes empreendedores do mundo moderno.

Um homem obcecado por estratégias
Desde jovem, Calouste demonstrava uma capacidade excepcional de enxergar além do presente, antecipando oportunidades e planejando meticulosamente cada passo para consolidar seu poder e influência. Uma evidência marcante desse traço se revela quando ele projeta, ainda no início de sua trajetória, um casamento que poderia selar seu domínio sobre territórios estratégicos.
Ao tomar conhecimento da existência de uma jovem herdeira armênia, cujo casamento, no futuro, poderia garantir a ele um acesso privilegiado a terras e conexões comerciais vitais, Calouste não hesita em traçar um plano de longo prazo. A decisão de direcionar suas ações para, no tempo certo, unir-se à herdeira não foi motivada pelo afeto ou por impulsos passionais, mas sim por uma frieza calculista que define sua conduta em todos os aspectos da vida. Ele compreendia que a consolidação de sua fortuna e prestígio passava pela antecipação de cenários, e o matrimônio estratégico era um dos meios mais eficazes de garantir a perpetuação de seu império econômico e político.
Outro episódio que ressalta sua visão estratégica ocorre no momento em que Calouste expande sua rede de negócios para além das fronteiras do Império Otomano. Em vez de agir impulsivamente diante das oportunidades, ele analisa minuciosamente os cenários, identifica os aliados ideais e constrói lentamente as condições para que, quando entrasse em determinado mercado, o fizesse com um domínio absoluto. Seu raciocínio era pautado pelo cálculo minucioso de riscos e benefícios, evitando passos precipitados e garantindo que cada ação sua tivesse um efeito multiplicador em seu crescimento econômico.
A genialidade de Calouste Gulbenkian reside, portanto, na sua capacidade de transformar cada aspecto da vida – desde escolhas pessoais até decisões comerciais – em movimentos precisos dentro de um tabuleiro de xadrez, onde a vitória dependia da paciência, da antecipação e da execução impecável de suas estratégias.

José Rodrigues dos Santos
A primeira parte de “O Homem de Constantinopla” revela-se uma envolvente jornada de crescimento, ambição e transformações pessoais e históricas. José Rodrigues dos Santos constrói um cenário vibrante e detalhado da Constantinopla do final do século XIX e início do século XX, explorando as mudanças políticas, sociais e econômicas que moldaram a trajetória de Calouste Gulbenkian e sua família. A riqueza narrativa e a profundidade psicológica dos personagens conferem à obra uma dimensão que transcende a mera ficção histórica, tornando-a um estudo fascinante sobre a ascensão de um homem movido pela inteligência e pelo desejo de poder.
No desenrolar da trama, um dos pontos centrais é o romance do filho de Calouste, que se apaixona por Marjan, uma garota armênia. Esse envolvimento não é apenas um elemento romântico na história, mas também um reflexo das escolhas e dilemas que a família enfrenta ao longo dos anos. A relação entre os dois personagens acrescenta nuances emocionais à narrativa, contrastando com o pragmatismo e a frieza dos interesses comerciais e políticos que permeiam a trajetória de Calouste.
A primeira parte do livro termina com a consolidação de Calouste como uma figura de destaque no cenário empresarial e financeiro, mas também antecipa os desafios e dilemas que ele enfrentará à medida que a Europa e o Oriente Médio caminham para tempos turbulentos. A força do protagonista reside em sua visão estratégica e sua capacidade de adaptação a um mundo em constante mutação. No entanto, os laços afetivos e os conflitos internos indicam que sua jornada não será apenas de conquistas materiais, mas também de questionamentos pessoais e existenciais. A transição para o segundo volume, Um Milionário em Lisboa, já é insinuada nos acontecimentos finais da primeira parte, quando se percebe que o destino de Calouste estará inevitavelmente ligado a novos desafios e mudanças geográficas. Lisboa surge como um símbolo de um novo ciclo na vida do personagem, um refúgio e, ao mesmo tempo, um palco para sua última grande aposta. Assim, a conclusão desta parte do romance prepara o leitor para uma continuação repleta de reviravoltas e aprofundamentos na complexidade da trajetória de Calouste Gulbenkian. Posto isso, apresentamos o autor.
José Rodrigues dos Santos, com sua escrita fluida e detalhista, oferece um panorama riquíssimo de uma época de transição e de personagens marcantes que personificam os desafios e ambições do período. A história de Calouste não é apenas uma biografia romanceada, mas um reflexo das transformações que marcaram o mundo moderno, tornando O Homem de Constantinopla uma leitura envolvente e instigante. Convido o leitor a mergulhar nas mais de 400 páginas desta história fascinante e descobrir a trajetória de um empreendedor que não apenas conquistou sucesso nos negócios, mas também se destacou como um extraordinário mecenas das artes. A Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, é prova viva da generosidade de um homem que escolheu retribuir ao país que o acolheu sem discriminação.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp e crítico literário. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.
P.S.: Agradeço à confreira Marina Canedo pelo presente dos dois volumes que revelam a vida desse talentoso empreendedor, cujo amor pelas artes o levou a construir, em Lisboa, um dos mais importantes centros culturais do mundo. Anos atrás, estive lá. Na Fundação Calouste Gulbenkian, pude constatar que a verdadeira arte é a expressão máxima do belo.
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