Por que Egito e Jordânia rejeitam plano de Trump para realocar milhões de palestinos?

Do jornal O Globo

A proposta do presidente norte-americano, Donald Trump, de “assumir o controle” da Faixa de Gaza e realocar permanentemente os dois milhões de palestinos que vivem no enclave foi ferozmente rejeitada por Egito e Jordânia. Na visão do chefe da Casa Branca, ambos representam destinos óbvios para esse enorme contingente populacional devido à proximidade geográfica com o território disputado e às suas afinidades étnicas e históricas. O líder egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, e o rei jordaniano, Abdullah II, não pensam assim.

— A Jordânia é para os jordanianos, e a Palestina é para os palestinos — disse o ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Ayman Safadi.

Há décadas, Egito e Jordânia possuem acordos de paz com Israel, mediados por Washington, e são dois grandes beneficiários dos EUA no Oriente Médio, mas defendem a criação de um Estado palestino na Cisjordânia ocupada, em Gaza e em Jerusalém Oriental. Algo que, segundo eles, se tornaria impossível com a “limpeza” proposta por Trump.

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Pressão popular

Um influxo de refugiados dessa magnitude também teria um potencial desestabilizador para ambos, afirmam especialistas. Os dois países lidam com diversas questões internas delicadas, como crise econômica, dependência de ajuda externa, estabilidade política frágil (baseada em regimes repressivos) e um forte apoio populacional à causa palestina, sem contar a pressão exercida sobre os serviços públicos pelos fluxos migratórios já existentes.

— Egito e Jordânia têm muitos problemas, mas são dois países absolutamente importantes para a manutenção da estabilidade regional e do cessar-fogo em Gaza, e esse tipo de atitude [proposta por Trump] poderia simplesmente destruir seus governos e até esfacelar os acordos de paz históricos — explica Monique Sochaczewski, professora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

— As ruas do mundo árabe são pró-Palestina. A pressão popular seria enorme, continua Monica.

Durante muito tempo, o Egito foi considerado um destino amigável para estrangeiros de todos os tipos, incluindo refugiados, devido às suas regras frouxas de imigração. Desde 2023, porém, Cairo vem endurecendo suas normas, depois que uma guerra civil no Sudão levou mais de 1,2 milhão de pessoas a buscarem refúgio no país, seu principal destino, segundo dados oficiais.

O Egito diz que gasta US$ 10 bilhões por ano (equivalentes a quase 2,5% de seu PIB) com nove milhões de imigrantes e mais de 570 mil solicitantes de asilo. Analistas, porém, argumentam que esses números são inflacionados pelo governo para obter mais financiamento de apoiadores internacionais ávidos por evitar a migração para seus próprios países. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o país, na verdade, acolhe cerca de 1,5 milhão de refugiados e solicitantes de asilo, dos quais 902 mil são registrados.

Em março de 2023, a União Europeia anunciou um pacote de € 7,4 bilhões em ajuda para o Cairo, que, segundo a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, foi “o melhor jeito de lidar com os fluxos migratórios”. Nos últimos anos, governos europeus têm demonstrado preocupação com o risco de instabilidade no Egito, um país de 106 milhões de habitantes mergulhado em dívidas, dependente de importações de produtos básicos como trigo e energia, e cuja situação financeira já era precária antes mesmo das guerras na Ucrânia e em Gaza fazerem sua economia despencar.

De acordo com Sisi, o Egito perdeu US$ 7 bilhões em receitas cruciais do Canal de Suez em 2024, uma vez que o conflito em Gaza reduziu a navegação no Mar Vermelho após sucessivos ataques de rebeldes houthis a embarcações comerciais. O valor corresponde a mais de 60% do faturamento da via marítima no ano anterior.

Questões de segurança

A transferência de um grande número de palestinos para a Península do Sinai, na fronteira com Gaza, também teria implicações de segurança, alertou o presidente em janeiro. O Hamas e outros grupos de combatentes, afirmou, estão profundamente enraizados na sociedade palestina e provavelmente se mudariam com os refugiados, o que significaria futuras guerras em solo egípcio. Além disso, poderia jogar o país nas mãos da Irmandade Muçulmana, movimento político-religioso radical aliado do Hamas que esteve no poder entre 2012 e 2013 e hoje é classificado como terrorista internamente.

— A deportação ou o deslocamento do povo palestino é uma injustiça da qual não podemos participar — disse.

A linha vermelha da Jordânia também está fundamentada em uma dura realidade: o país enfrenta muitos desafios, incluindo alto índice de desemprego, baixo crescimento econômico e um grande déficit orçamentário, e tem o segundo maior número per capita de refugiados do mundo, 710 mil em uma população de 11,3 milhões de habitantes, segundo o Acnur. Seu território abriga também milhões de palestinos que chegaram em diferentes levas desde a criação do Estado de Israel, em 1948, e cujo exílio acabou tornando-se permanente, pois o retorno para a terra de seus ancestrais nunca foi permitido.

Estima-se que de 55% a 70% da população da Jordânia se identifique como palestina por origem ou nacionalidade. A população cresceu de 750 mil deslocados em 1948 para um número estimado de cinco milhões a sete milhões, incluindo pelo menos 2,4 milhões de refugiados registrados na Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA), muitos dos quais são de segunda geração e têm cidadania jordaniana.

O deslocamento prolongado tem causado desafios políticos, sociais e econômicos complexos há décadas para o país, afetando seu crescimento populacional e equilíbrio demográfico, dois fatores no centro das políticas de segurança e estabilidade nacional do reino desde que, em 1970, forças jordanianas e facções da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) se enfrentaram numa breve guerra civil que entrou para a história como o Setembro Negro ao deixar milhares de mortos, a maioria palestinos.

Foto rara mostra Gaza antes da criação do Estado de Israel

Ultranacionalistas israelenses há muito tempo, inclusive, sugerem que o território jordaniano seja considerado um Estado palestino, dada sua composição demográfica, para que Israel possa manter a Cisjordânia, que eles consideram o coração bíblico do povo judeu. A monarquia da Jordânia rejeita veementemente esse cenário.

— Os palestinos passam a imagem de um povo mobilizado, e nenhum governo autoritário quer gente criando caso no seu país — diz Márcio Scalercio, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio. — Além disso, como realocar mais de dois milhões de pessoas, boa parte delas pobres, em dois países cuja população é também muito pobre e carente de serviços públicos? É uma política perversa.

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