O olhar do gênio Vargas Llosa no legado de outro gênio, García Márquez (parte 1)

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Em 1971, Mario Vargas Llosa, um dos maiores escritores da literatura latino-americana, defendeu tese de doutorado na Universidade Complutense de Madri. Intitulada “García Márquez — História de um Deicídio”, a obra é um mergulho profundo na produção literária do escritor colombiano, explorando os mistérios e as nuances de sua genialidade como um dos maiores nomes da literatura mundial.

Vargas Llosa dedica-se a uma análise minuciosa das obras de García Márquez, examinando suas influências, sua visão de mundo e, especialmente, a construção narrativa que o tornou um dos pilares do realismo mágico. O título da obra, “História de um Deicídio” (Record, 616 páginas, tradutora Ivone Benedetti), reflete a visão de Gabriel García Márquez como um autor que ousou, simbolicamente, desafiar e reconstruir a ordem divina por meio de sua literatura.

Apesar do reconhecimento acadêmico e literário da tese, o livro carrega em seu histórico um enigma que transcende as páginas: o rompimento entre Vargas Llosa e García Márquez. Os dois, outrora amigos próximos e representantes de uma geração de escritores latino-americanos que moldaram a identidade cultural da região, tiveram uma ruptura definitiva, cuja causa permanece um mistério. Rumores apontam para razões pessoais, mas o silêncio de ambos sobre o assunto só intensificou a curiosidade ao longo dos anos.

Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez: o romance que firmou o boom da literatura latino-americana | Fotos: Jornal Opção e reprodução

Após o rompimento, Vargas Llosa proibiu a circulação de sua tese, retirando o livro do mercado. Durante anos, “História de um Deicídio” permaneceu inacessível ao público, tornando-se uma espécie de obra “fantasma” na vasta bibliografia do autor peruano. Apenas recentemente, Vargas Llosa autorizou o retorno da obra às livrarias, proporcionando aos leitores contemporâneos a oportunidade de redescobrir essa análise brilhante sobre García Márquez.

O retorno de “História de um Deicídio” à circulação é mais do que um evento literário; é um convite para revisitarmos a complexa relação entre esses dois gigantes da literatura mundial. Embora as razões para o afastamento permaneçam obscuras, a reedição do livro sinaliza que, ao menos no campo intelectual, Vargas Llosa não renega o impacto de García Márquez em sua formação como autor e crítico.

Com a reedição, o público é convidado não apenas a apreciar o gênio de García Márquez sob a ótica de Vargas Llosa, mas também a refletir sobre os laços e as rupturas que moldam a história da literatura. Essa obra, que retorna das sombras, é um lembrete de que, mesmo diante de conflitos pessoais, a admiração e o respeito pelo talento literário podem transcender as diferenças e permanecer imortais.

A obra é um mergulho profundo na produção literária de Gabriel García Márquez, explorando os mistérios e as nuances de sua genialidade como um dos maiores nomes da literatura mundial.

Mario Vargas Llosa, escritor peruano, e Gabriel García Márquez, escritor colombiano, ganharam o Nobel de Literatura e se tornaram inimigos viscerais | Fotos: Reproduções

O olhar de Vargas Llosa no universo de Gabo

García Márquez, em sua jornada literária até a obra-prima “Cem Anos de Solidão”, construiu passo a passo um universo único, que Vargas Llosa descreve como uma luta incessante contra os demônios criativos que moldaram sua escrita. Cada obra do autor representa um confronto com esses demônios, refletindo sua tentativa de recriar a realidade e transformá-la em algo mítico e eterno. Em ” A Revoada””, García Márquez introduziu Macondo, uma aldeia isolada e mítica que se tornaria o centro de seu universo literário. Nesta obra, o demônio que se manifesta é o do isolamento e da memória, enquanto o autor explora as sombras do passado e as complexidades da história familiar e social. Macondo surge como um espaço perdido no tempo, simbolizando a busca do autor por compreender suas próprias raízes e dar voz ao esquecimento coletivo.

Com “Ninguém Escreve ao Coronel”, García Márquez se volta para a dignidade silenciosa e a resistência diante da adversidade. O coronel — que espera, em vão, uma pensão governamental — é assombrado pelo demônio da desesperança e da espera infinita. Este demônio, presente em tantas vidas latino-americanas, reflete a luta contra um sistema opressor que nega a realização de sonhos, ecoando a angústia pessoal e histórica do autor. Já em “A má hora”, o foco recai sobre as tensões sociais e políticas que levam à violência e à destruição. O demônio que emerge aqui é o da paranoia coletiva e da corrupção, representando a desconfiança e o medo que corroem as comunidades. García Márquez cria uma alegoria política na qual o veneno da intriga e da ambição destrói o tecido social, explorando a dinâmica de poder que define a América Latina.

Os contos reunidos em “Os Funerais de Mamãe Grande” representam um novo estágio na construção do universo de García Márquez. Aqui, o autor refina o realismo mágico e aprofunda a mitologia de Macondo, apresentando personagens e situações que oscilam entre o ordinário e o extraordinário. O conto-título, uma sátira sobre o poder e a morte, apresenta o demônio da grandiosidade e do mito, revelando o desejo de García Márquez de capturar o poder simbólico das figuras icônicas que moldam o imaginário popular. Cada história deste conjunto é uma peça do quebra-cabeça que culminará em sua obra-prima.

“Cem Anos de Solidão” é a culminação de todos esses esforços e o encontro definitivo de García Márquez com o demônio criador que Vargas Llosa identifica como o centro de seu legado.

Nesta obra, a história da família Buendía é narrada como um ciclo eterno de repetições, fatalismo e solidão, espelhando a história da América Latina. O demônio que García Márquez enfrenta aqui é o do tempo e da criação divina. Ao construir um universo literário tão completo e complexo, o autor se torna um deus criador, mas também comete um deicídio ao destruir a lógica linear do tempo e a visão convencional da história.

O legado de García Márquez, sob o olhar de Vargas Llosa, é o de um autor que transcendeu a realidade, transformando-a em mito e arte. Cada obra sua é uma batalha contra os demônios que o inspiraram e o atormentaram, culminando em uma visão única da condição humana e da essência latino-americana.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp e crítico literário. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.

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