Poemas perdidos

Acontece com frequência, e deve ser coisa de preguiça ou do avançar dos anos: parar de tomar nota quando está no pré-sono, já envolto por aquele desejo irrealizado de sono, coisa de quem quis crer que dormiria e que a nota podia atrapalhar e atrapalharia, certamente, o que faz com que várias ideias maravilhosas e também algumas muito ruins fossem largadas, colocadas na passagem de uma esquina de avenida já de madrugada profundamente adentro, sem carros, erma e perigosa e sombria. Lá foram deixadas as ideias para um poema, livro, conto, ensaio, crônica, o quer que seja com a palavra. Numa entrevista antigamente recente do mestre do samba, Paulinho da Viola, ele contou sobre seu processo criativo, que por vezes tal música, tipo aquele clássico lindo, foi salva do abandono quando já estava deitado e então que ele decidiu levantar e anotar aquela ideia/levada/frase de uma música, não sei se ele disse ou pensei algo como: e as ideias que ele não anotou e se perderam?? Meu ”sósia” (eu sei que ele vai gostar) preferido do Paulinho da Viola é o amigo músico e bluesman dos bairros periféricos, Luciano Ninomia.

As pessoas que gerenciam um arsenal de situações devem pensar: é isso que eu devia fazer com a solução que imaginei sobre a dívida que fiz com meu amigo, com o banco e com a ferragista. Mas isso não é possível, pois solução não parece ser coisa de artista, e coisa de artista que é do pré-sono, por ser do universo dos sonhos, do onírico. O sonho que traga o Paulinho da Viola e o leve à anotação, e a mim quando eu uso coisinhas ou na época que a pessoa escreve uma tese de doutorado – o mais próximo de criador que a gente acreditou ser. Vou contar uma ideia que tive há anos e me acompanha. Serei confessional, de novo.

Talvez fosse 2020, num intervalo de aula de teoria sociológica, em meio a pandemia, online, coloquei um disco do Led Zeppelin, Physical Graffiti, e lembrei do meu irmão, Pablo Lenine, simplesmente porque ele adorava esse disco. As duas primeiras músicas resolvem um trecho da história da música, são simplesmente rockão de altíssima qualidade. Muito demais. “Custard Pie” e “The Rover”. Morava em Palmas-TO e fazia um calor insuperável. Notícia velha. Era à noite, depois de finalizar as aulas, tomei um chá quente no ar-condicionado no maior frio possível, pensei: o Pablo foi meu maior professor de música. Não anotei.

Nos mais de 10 anos de Tocantins, desenvolvi um gosto para atividades domésicas que envolviam água, claro com o calor anunciação do cramunhão em berço esplêndido, no caso lavar vasilhas, mexer com roupa, jogar água na área e no banheiro. Antes do almoço eu lavava vasilhas, escutava podcasts (hábito que a pandemia nos legou) e pensava na vida.

É uma tese razoável que a gente tenha sido tão bombardeado por tantos debates que estamos insensíveis. Ou a culpa é minha? Ou dos “kids preto”? Deles, nunca. Vamos à etimologia. “Kids” significa “criança” e os componentes das Forças especiais do exército brasileiro tem essa nomeção com a adição da cor do gorro. Mas são “crianças”, nenéins, e querem dar golpe e são chamados de “crianças”! Por essa e por outras, o exército é tão respeitado, na arte de pintar meio-fio. O que importa é que dos podcasts ia para música, numa miscelânia.

Sempre que colocava Led ou Beatles eu lembrava do Pablo. No pré-sono em diversas noites matutei que devia escrever um texto aproveitando o dia dos professores para homenagear os professores e meu irmão por ter sido o meu professor de música. Mas não anotei. Larguei essa ideia porque ele estava muito doente em decorrência da ataxia sc3 e ia parecer errado escrever coisas bonitas e poéticas de alguém vivo. Como se só os mortos merecessem coisas bonitas. Adequando à realidade, os mortos só mereceriam coisas boas.

Descrente da vida eterna, apregoo que a parte boa da vida é quando estamos vivos. Isso é com o intuito de dizer, que se fosse artista teria encontrado um jeito de formular a um vivo, mesmo que morimbundo, das coisas boas que ele fez em vida com a gente. Perdemos a chance de ser uma pessoa legal e expressar as coisas e eu de não anotar o que me vem e me achar artista. Pois não posso ter a audácia, me dar ao luxo, de abandonar uma ideia nas ruas noturnas, de fazer a minha alegria e a sua, acreditando no que fica e então volta, como uma fixação: “[n]ão sou eu quem me navega, quem me navega é o mar.” O certo é fazer homenagem aos vivos. No mínimo, já que “ainda estamos aqui”, mesmo que desmemoriados ou moribundos.

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