O centro de uma cidade como o Recife está morrendo em silêncio

Por Flávio Chaves*

No início da década de 80, cheguei ao Recife, vindo do interior, com a mala carregada de sonhos e a coragem dos que acreditam no futuro. A cidade me deslumbrava com sua monumentalidade e ritmo próprio, um cenário tão fascinante quanto intimidador. Sentia-me como nos versos de Raul Seixas em “Sessão das 10”: “Ao chegar do interior, Inocente, puro e besta.” Tudo era espanto para mim. Caminhar por suas ruas era como atravessar um livro de histórias vivas, onde cada ponte e praça contavam segredos de um passado grandioso.

A Avenida Conde da Boa Vista, com sua efervescência cultural, era o coração pulsante do Recife. Ali, a Mesbla, a Aki Discos e as Lojas Americanas eram mais do que pontos de comércio; eram templos de encontro e descoberta. Foi na LUTZ Ferrando que comprei minha primeira Polaroid, iniciando uma relação com a fotografia que marcaria minha vida. Os cinemas São Luiz e Veneza, o Teatro do Parque e os bares do centro eram como altares culturais onde o Recife mostrava sua alma criativa. Discos de vinil de Chico Buarque e Caetano Veloso eram quase símbolos de pertencimento àquela juventude universitária que buscava no saber e na arte um refúgio contra a repressão.

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Na Unicap, cursando Letras, vivi intensamente os debates e as efervescências culturais da época. Foi ali, em meio a conversas furtivas e olhares atentos, que idealizei a “1ª Caminhada Poética Brasileira”. O evento, realizado durante o Festival de Inverno da Unicap em 1983, foi um marco cultural. Partimos da Casa da Cultura, antiga Casa de Detenção, em direção à universidade, em uma procissão artística iluminada por lamparinas de velas acesas, como as tradicionais procissões do interior. Poetas, músicos e o povo recitavam e cantavam, enquanto o carro de som intercalava poesia e música. A presença de Thiago de Mello, autor de “Faz escuro, mas eu canto”, foi um destaque. Quando chegamos à Unicap, as sirenes dos carros verde-oliva tentaram intimidar, mas o reitor, padre Amaral Rosa, com sua serenidade admirável, garantiu que tudo seguisse em paz. Foi um dia em que a arte venceu o medo.

Ainda naquele ano, lancei meu livro “Digitais de um Coração” na Livraria Livro 7, de Tarcísio Pereira. A edição esgotou-se na noite de autógrafos, um feito que ainda me emociona. Naquela noite, entre batidinhas de limão e conversas acaloradas, celebramos o poder da palavra e da amizade. Tarcísio, com seu espírito generoso, brincou sobre o entusiasmo dos meus convidados, mas o que ficou foi a certeza de que a poesia encontrara seu espaço.

O Teatro do Parque, por sua vez, era mais do que um espaço de espetáculos; era um lugar onde ideias e emoções se encontravam. Em tempos passados, o Teatro de Santa Isabel fora palco de debates memoráveis entre Castro Alves e Tobias Barreto. Entre versos e argumentos, discutiram liberdade, abolição e filosofia, marcando a história com suas palavras. Em uma dessas noites marcantes, Castro Alves provocou a plateia: “O sangue de um homem é o preço da liberdade!” Tobias Barreto, contrapondo, argumentava sobre a emancipação intelectual como o alicerce das grandes revoluções. A intensidade dos debates ecoava além do palco, ganhando vida nas ruas e mentes do Recife.

Outro marco na história da cidade foi o episódio envolvendo o sociólogo Gilberto Freyre e a polícia política na fachada do prédio do Diário de Pernambuco. Em uma cena tensa e emblemática, Freyre, defensor incansável da liberdade de expressão, tentou intervir em uma abordagem repressiva, mas o desfecho trágico foi a morte do estudante de Direito Demócrito de Souza Filho. Esse acontecimento não apenas abalou o Recife, mas também serviu como um grito de resistência em tempos de opressão.

Hoje, o Recife parece ter perdido parte de sua alma. O centro, com suas pontes e rios, seus casarões e ruas históricas, está abandonado. Os prédios que outrora abrigaram histórias grandiosas agora desabam, esquecidos. As ruas, antes repletas de transeuntes e debates, estão desertas, como no poema de Carlos Pena Filho, “Chopp”:

“Na avenida Guararapes,

o Recife vai marchando.

O bairro de Santo Antônio,

tanto se foi transformando

que, agora, às cinco da tarde,

mais se assemelha a um festim,

nas mesas do Bar Savoy,

o refrão tem sido assim:

São trinta copos de chopp,

são trinta homens sentados,

trezentos desejos presos,

trinta mil sonhos frustrados.”

É urgente resgatar o centro histórico do Recife. Precisamos de um plano político que valorize sua história, restaure seus prédios e devolva vida às suas ruas. O centro do Recife é mais do que um lugar; é um testemunho de quem somos. Que não seja engolido pelo silêncio do abandono. Como as águas que correm pelos seus rios, o Recife precisa voltar a fluir, com vida, poesia e força.

Que novos passos tragam movimento às ruas. Que as luzes dos casarões voltem a brilhar. Que o Recife renasça, porque cidades como essa não podem sucumbir. Elas são eternas como as histórias que contam.

*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras

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