Sem lugar para o homem velho, ou o canto de cisne de Paul Auster

Cezar Santos*
Especial para Opção Cultural

O que pode ser mais trivial do que um pequeno acidente doméstico na cozinha, resultando numa queimadura de pouca gravidade? Poucas coisas, com certeza. Mas isso, no fabulário do norte-americano Paul Auster, é o gatilho para iniciar uma tocante história de amor, de tristeza, de recordações, de reflexões sobre velhice, vida e morte, luto…

Tudo é contado sem amargura, com nostalgia, na resignação do aceitar os males e os bens que os acasos proporcionam à existência humana. (“Nada é real a não ser o acaso”, conclui Auster em “Cidade de vidro”, primeiro volume de sua “Trilogia de Nova York”).

O início prosaico de “Baumgartner” põe em cena o personagem que dá nome ao livro, às voltas com um trabalho acadêmico — o que ele não tinha mais obrigação de fazer, uma monografia sobre os pseudônimos do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (referências eruditas são uma constante na obra austeriana) —, ao mesmo tempo que trata de trivialidades, como receber correspondência e cuidar de reparos na casa.

Baumgartner é um escritor e professor de filosofia de 77 anos (abertamente alter ego de Auster), à beira da aposentadoria. Ele sofre as dores da perda da mulher, Anna, uma ótima nadadora que paradoxalmente morre afogada, numa fatalidade quase inexplicável. O viúvo demora um pouco para assimilar o golpe fatídico, como seria natural.

O que quer que tenha acontecido, … não aconteceu comigo mas com Anna. Ela está morta por causa disso e, como vi seu corpo morto na praia, como carreguei nos braços aquele corpo morto, absorvi totalmente o que aconteceu com ela. O que me aborrece é que ela insistiu em voltar para a água pela última vez, embora, a essa altura, o vento estivesse mais forte e o mar agitado, com ondas crescendo cada vez mais e arrebentando. Mas, quando eu lhe disse que estava ficando tarde e devíamos ir para casa, ela riu de mim e correu para a arrebentação. Anna era assim, uma pessoa que fazia o que bem queria e não aceitava um não como resposta, impulsiva e voluntariosa. Além de exímia nadadora.

Não, não me culpo. Teria sido inútil insistir. Ela não era alguém que fazia o que lhe fosse dito, que aceitasse ordens. Era uma mulher adulta, não uma criança, e sua decisão de adulta era que ia cair na água de novo. Eu não podia impedi-la, não tinha esse direito.

Sim, ela ainda estaria viva se não tivesse voltado para a água, mas também não teríamos durado juntos mais de trinta anos se eu tivesse tentado fazer coisas do tipo impedir que voltasse a cair na água quando quisesse.

Nos primeiros meses após a tragédia, Baumgartner vive num estado de confusão atordoante. Às vezes acorda de manhã esquecido de que Anna estava morta. Desce a escada do quarto para a cozinha esperando encontrá-la e conversa com ela antes de entrar no recinto e se deparar com vazio.

Depois de assimilado o luto, é preciso seguir em frente, e Baumgartner segue, às vezes meio aos trancos. Envolve-se com uma antiga amiga, com quem vive uma relação meio idílica em que, mesmo havendo sexo, é mais companheirismo que propriamente romance. E como ele mesmo já imaginava que aconteceria mais cedo ou mais tarde, ela o deixa.

É muito interessante o resgate dos textos deixados por Anna, que inclui ocorrências da vida amorosa dela, com outros homens e com ele — “… (no) armário-arquivo num canto da sala, quatro gavetas amplas e fundas que continham seus escritos em vários estágios de elaboração, uma grossa pilha de poemas que datavam dos anos de ensino médio e marchavam até três semanas antes de afogar-se, as páginas datilografadas e corrigidas à mão de dois romances abortados, vários contos, uma dúzia de resenhas e uma caixa de tamanho médio com anotações autobiográficas que ocupava sozinha a gaveta de baixo”.

Esses textos abrem a caixa de memória do viúvo. E desperta sua veia literária por perceber que os poemas guardados da finada merecem ser publicados. Para organizar os poemas da amada, entra em cena, em um pequeno encadeamento de acasos, uma jovem acadêmica que tem verdadeira obsessão pelo único livro de Anna publicado. Baumgartner e a estudante estabelecem contato e acertam que ele a receberá como uma espécie de “residente” acadêmica em sua casa, com acesso total aos escritos da esposa defunta.

Na iminência do encontro entre o velho mestre viúvo e a jovem erudita, o romance termina. Um final um tanto anticlimático. Como minha primeira leitura foi da edição portuguesa, fiquei em dúvida se teria havido algum truncado no texto. Conferi na edição brasileira da Companhia das Letras (tradução sempre soberba de Jório Dauster).

Esse final me deu a impressão de que Auster “largou” a história; talvez, cansado de escrever, parou para prosseguir depois ou deixou, deliberadamente, a possibilidade de continuação, justamente num ponto que se apresentava muito interessante. Ou será que o câncer que ceifaria sua vida poucos meses depois já estivesse lhe causando desânimo físico?

“Baumgartner” evoca diretamente “A invenção da solidão” e “4321”, pelo uso primordial da memória. É o canto de cisne de Paul Auster (se não aparecer algum inédito deixado para trás). Haverá quem diga que não chega ao nível dos melhores trabalhos dele. Mas é uma leitura muito proveitosa, que gratifica o leitor. Trata-se de um texto tocante, reflexivo, um delicado poema (em prosa) do amor ausente.

Uma literatura metaliterária

A ficção austeriana é vasta, com mais de 30 livros, na maioria ficção, mas também poemas, memórias e traduções. Ele foi, também, ensaísta arguto, um pensador da literatura, e escreveu vários textos sobre alguns de seus livros e autores preferidos, sobre pintura e filosofia. Como se fosse pouco, Auster, cinéfilo confesso, escreveu roteiros, dirigiu dois ou três filmes muito interessantes, pequenas joias cinematográficas que, claro, não tiveram alcance junto ao grande público. Alguns de seus livros foram para a telona pelas mãos de outros roteiristas e diretores.

Paul Auster foi um dos maiores escritores nova-iorquinos das décadas de 1980 e 1990 | Foto: Reprodução

Na bibliografia de Paul Auster há algumas obras-primas; histórias que, além de dramas íntimos, dores do crescimento que atormentam crianças e adolescentes, e impasses amorosos de casais, mergulham no desconcerto da contemporaneidade, criticam o american way of life e o sistema político de seu país.

São exemplos “A Invenção da Solidão”, “A Trilogia de Nova York”, “Leviatã”, “O Caderno Vermelho”, “Timbuktu” (este, tenho para mim, foi “soprado” por Machado de Assis; numa entrevista à Folha, há 20 anos, Auster revelou ter lido do brasileiro “aquele livro sobre o cachorro”, o “Quincas Borba”, of course) e outros. Há, até, uma interessantíssima incursão na ficção distópica, “No país das últimas coisas”, e um livro de pungente e delicioso realismo mágico, “Mr. Vertigo”.

Um traço da obra austeriana é a metaliteratura. Muitas vezes ele deixa a descoberto as engrenagens do fazer literário em suas histórias. Não é por acaso que o personagem típico do autor é um escritor às voltas com os dilemas da criação literária.

Em “Baumgartner” estão presentes muitos dos elementos tão caros a Auster e que lhe deram uma legião de fãs, principalmente no Brasil, Portugal e França — nestes dois países europeus ele é cultivado à beira da idolatria por leitores e pela mídia cultural. Para se ter uma ideia, “Baumgartner” veio à luz em novembro de 2023 nos Estados Unidos, concomitante à edição portuguesa – a edição brasileira só quase um ano depois.

Auster foi um dos grandes nomes da literatura nas últimas cinco décadas – mais um grande autor que deixa o século 21 desprezado pelo Nobel, a se juntar aos conterrâneos Roth, Updike, Salinger, Foster Wallace, (Cormac) MCarthy, Doctorow e outros.

Paul Benjamim Auster morreu em abril passado, de complicações de câncer de pulmão, diagnosticado no final de 2022. Embora já tivesse largado o hábito, foi fumante inveterado anos a fio e tornou-se vítima da mais estúpida forma de suicídio lento, o tabagismo.

Há pelo menos três livros de Auster publicados nos EUA e ainda sem versão no Brasil: a biografia de ninguém menos que Stephen Crane, o romance “Burning Boy” (de 2017, finalista do Prêmio Booker) e “Bloodbath Nation”, (“Um país banhado em sangue”, em tradução livre), em que ele discorre sobre a questão das armas nos Estados Unidos. Que cheguem logo ao Brasil…

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