2024 mostrou o que significa um mundo 1,5 °C mais quente

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“Pode um grupo limitado de países destruir um bem comum indispensável para a sobrevivência da humanidade, como é o sistema climático, para enriquecer e transferir todo o fardo dos efeitos nocivos das suas ações para outros países, povos e indivíduos, adiando sempre, se não para sempre, sua responsabilidade e solidariedade? Não, ninguém pode enriquecer injustamente e desenvolver-se economicamente à custa do sacrifício dos direitos dos Estados, dos povos e dos indivíduos.” (Mamadou Hébié, professor de direito internacional da Universidade Leiden, em representação a Burkina Faso)

“Somos uma das nações mais vulneráveis ​​na linha da frente das mudanças climáticas. Nosso objetivo hoje é simples. Queremos garantir nossa soberania permanente sobre nossos recursos naturais. Valorizamos nosso modo de vida tradicional. Nossa relação com o oceano, a terra e a família é a nossa identidade. As mudanças climáticas afetam diretamente a essência de quem somos. Como nação-atol, não temos terrenos mais elevados. A maioria das nossas 32 ilhas tem menos de 2 metros acima do nível do mar. O nosso ponto mais alto fica apenas 4 m acima do oceano… Não queremos tornar-nos refugiados apátridas: queremos ficar nas nossas casas, nas nossas comunidades.” (Teburoro Tito, embaixador da República de Kiribati na ONU).

“Veraibari era tão linda quando eu era criança, eu caminhava até a praia passando

debaixo das mangueiras, mas tudo mudou. Na minha vida eu vi o mar ficar

cada vez mais alto, destruindo nossa floresta de coqueiros, nossos cemitérios tradicionais, nossa escola, nosso posto de saúde e nossas casas. Tem uma cara feia agora. Pois nossas árvores, casas, os lugares que são importantes para nós parecem ruínas. Já fomos forçados a nos mudar quatro vezes, três durante a minha vida. Estamos planejando nos mudar novamente pela quinta e última vez. Os mares estão invadindo nossas casas, já construídas sobre altas fundações de madeira. Se esta realocação falhar, não teremos outro lugar para onde ir.” (Ara Kouwo, morador da vila Veraibari, em Papua-Nova Guiné)

Relatos e declarações como essas, de mais de cem países e organizações, marcaram um evento histórico nas duas primeiras semanas de dezembro. Pela primeira vez, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), localizado em Haia (Holanda), abriu um período de audiências para considerar as implicações legais da crise climática. 

Representantes dos países menos desenvolvidos e mais vulneráveis – que em nada contribuíram para o aquecimento global, mas que são os primeiros a ver suas casas, seus modos de vida e sua história desaparecem com a intensificação dos eventos extremos – cobraram clareza legal sobre a quem cabe proteger essas populações e mitigar os danos climáticas.

“A iniciativa de levar as mudanças climáticas diante do TIJ não se trata de nomear ou envergonhar qualquer nação em particular, mas destacar as regras existentes do direito internacional e suas consequências para todas as nações, fornecendo a base para uma verdadeira ação e justiça climáticas através da compreensão partilhada de responsabilidade e prestação de contas”, explicou o primeiro-ministro de Vanuatu, Charlot Salwai, durante a Assembleia Geral da ONU neste ano. 

Segundo ele, Vanuatu perde cerca de metade do seu PIB cada vez que é afetado por um ciclone severo, como vem acontecendo de modo cada vez mais frequente. Como se desgraça pouca fosse bobagem, a ilha acaba de ser atingida por fortes terremotos (evento sem relação com a mudança do clima, mas que aumenta terrivelmente a situação de um país já fragilizado). Foi do país a iniciativa de levar o caso do clima à corte.

A expectativa é que o TIJ chegue a um entendimento sobre as responsabilidades pelas altas emissões de gases de efeito estufa, especialmente dos maiores poluidores históricos, pela crise instalada e por oferecer soluções ao problema. Um movimento similar vem ocorrendo no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), como mostrou reportagem da Agência Pública de junho deste ano. 

Mas, apesar de exporem que “não existe crise mais existencial que esta”, como resumiu Julian Aguon, advogado que representou o grupo de países da Melanésia, as nações mais afetadas pelas mudanças climáticas acabaram ouvindo os países causadores do problema rejeitarem suas responsabilidades. 

Para os países ricos, a Convenção do Clima da ONU (UNFCCC), que organiza as conferências anuais do clima (COPs) e sob a qual foi instituído o Acordo de Paris, já seria o foro adequado para as ações sobre as mudanças climáticas. O argumento é que não seria necessário mais nenhum tipo de jurisdição sobre isso.

O que, como as COPs vêm nos mostrando ano a ano, é uma grande balela. Países ricos têm repetidamente se recusado a fazer mais (principalmente quando o assunto é abrir a carteira, como ocorreu neste ano em Baku), enquanto as emissões de gases de efeito estufa continuam subindo e o planeta se tornando cada vez mais quente. 

As COPs sozinhas não têm sido capazes de entregar compromissos e ações na velocidade e na proporção que são necessárias. Não é à toa, portanto, que os países buscam um direcionamento da Justiça. Que a corte diga quais são as consequências legais para os Estados que causam danos climáticos e ambientais.

O embate no TIJ foi a cereja do bolo de um ano icônico sobre como estamos nos colocando em risco ao alterar o sistema climático do planeta. 2024 vai se encerrar como o mais quente do registro histórico, batendo o recorde de 2023, que já tinha sido bem superior ao recorde anterior. 

Pela primeira vez, ultrapassamos a régua do aquecimento de 1,5 °C. De acordo com dados ainda preliminares do observatório europeu Copernicus (medidos até novembro), já dá para dizer que o limiar estabelecido pelo Acordo de Paris como a temperatura que deveríamos ter como teto para evitar os impactos mais perigosos foi ultrapassado ao longo de todo este ano. 

Ainda é cedo para dizer se esse aquecimento é consistente. Se a temperatura média da Terra já se estabeleceu nesse novo patamar. Eventos sazonais podem fazer com que ela diminua no ano que vem. Mas já sentimos amargamente o que é um planeta 1,5 °C mais quente: das trágicas chuvas no Rio Grande do Sul à seca severa na Amazônia e queimadas por todo o país. Isso para ficar só no Brasil. 

Não faltaram exemplos de eventos dramáticos e ondas de calor em todo o mundo. “Logo em fevereiro, incêndios florestais mortíferos atingiram a região de Valparaíso, no Chile, matando quase 140 pessoas. Ondas de calor varreram o hemisfério norte, com 47 °C em Chipre, 44 °C na Itália e 45 °C em Portugal, no verão europeu. No México, bugios caíram mortos das árvores no estado de Tabasco, numa onda de calor que levou os termômetros acima de 45 °C em junho e afetou também o sul dos Estados Unidos”, resumiu o pessoal do Observatório do Clima em uma retrospectiva bem completa das tragédias do ano.

E diversos estudos mostraram que a maior parte deles só ocorreu com tal intensidade por causa desse aquecimento e das mudanças climáticas que decorrem dele.

Apesar de tantos exemplos eloquentes, 2024 foi um ano de decisões que vão na contramão dessa emergência, a começar pela volta do negacionista Donald Trump à Casa Branca. Mas não só. Pressões internas e externas dos países falaram alto. O resultado da COP de Baku deixou isso bem claro. Em todo o mundo, países estão adotando medidas que atrasam uma redução efetiva do problema. Como no Brasil, que reduz desmatamento por um lado, mas incentiva o avanço dos combustíveis fósseis por outro.

É aqui, no ano que vem, que vai ocorrer a próxima rodada de negociações climáticas, a COP30, que será realizada em novembro em Belém. Há altas expectativas sobre esse momento, não só porque o país tem uma grande habilidade diplomática, mas porque já não resta muito tempo para colocar o planeta nos trilhos de um futuro mais seguro. 

Então, no melhor espírito de otimismo que um novo ano nos traz, fica aqui o meu desejo para que a humanidade coloque essa meta como prioridade. 

Um feliz ano-novo para todos vocês! Nos vemos de volta em 9 de janeiro.

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