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Acervo Pessoal
Depois de trabalhar a noite toda, uma cozinheira de 30 anos de idade, só queria chegar em casa para descansar. Para isso, optou pelo serviço de transporte por moto, uma vez que a viagem seria mais rápida do que se fosse de ônibus.Só que ela não imaginava que, na porta da empresa e diante de colegas de trabalho, seria chamada de “gorda” e “baleia” pelo motociclista, ao negar fazer a corrida. Diante da humilhação, a cozinheira decidiu ingressar com uma ação na Justiça e a empresa 99 foi condenada a pagar uma indenização de R$ 8 mil por dano moral. A sentença foi proferida na última quarta-feira pelo juiz Ademar João Bermond, do 3º Juizado Especial Cível de Cariacica.À reportagem, a cozinheira, que pediu para o seu nome ser preservado, contou que o fato ocorreu em janeiro deste ano. O percurso de moto levaria cerca de 25 minutos, enquanto, de ônibus, demoraria aproximadamente uma hora, no município de Cariacica. A cozinheira disse que pegou o celular e filmou as humilhações sofridas, provas que foram anexadas ao processo. A advogada Kelly Andrade contou que este foi o primeiro caso em que atuou envolvendo a relação de consumo entre passageiro e profissional de empresa de aplicativo.“O que aconteceu é um caso clássico de gordofobia. Não é crime, mas, havendo qualquer tipo de dano em razão desse tipo de preconceito e discriminação, a vítima deve recorrer ao Judiciário a fim de ser reparada pela humilhação sofrida”, explicou a advogada.Kelly ressaltou que a empresa condenada ainda pode recorrer. “É necessário haver o trânsito em julgado (decisão definitiva) para que a vítima receba a indenização.” Ela aproveitou para deixar um recado: “Não aceitem esse tipo de situação que ofende a moral, a integridade e a honra de uma pessoa. Temos que combater todo e qualquer tipo de discriminação”.“Espero que um dia eu supere o trauma”A Tribuna – Como tudo aconteceu? Cozinheira – Eu tinha acabado meu expediente de trabalho. Entro às 18 horas e saio às 6 horas. Só que naquele dia, minha chefe pediu para eu ficar um pouco mais para ajudar em um coffee break.Fiquei no trabalho até 8 horas e como estava cansada, eu decidi chamar o 99 para ir embora de moto. Geralmente vou de ônibus, mas às vezes vou de moto e nunca passei por nada parecido. E o que aconteceu? Ele aceitou a corrida. Esperei cerca de oito minutos e percebi que ele já chegou me olhando estranho. Na frente dos meus colegas, começou a me humilhar. O que ele dizia? A portaria estava cheia de gente, era troca de turno. Ele já chegou nervoso, dizendo que não iria me levar porque eu era gorda. Disse: “Não tem como levar essa baleia”.Questionei o motivo, e ele falava que três aros da moto estavam quebrados e não tinha como levar uma passageira gorda. Ele estava muito exaltado.Meus olhos se encheram de lágrimas, fiquei com muita vergonha. Ele me mandava cancelar a corrida, e eu dizia que não iria cancelar. Aí começou o nosso embate.Foi então que eu segurei o choro e decidi filmá-lo. Ele dizia que, se eu postasse algo nas redes sociais, viria atrás de mim. Eu até registrei um boletim de ocorrência por conta das ameaças.Ainda argumentei que, se a moto estava com problema, ele não poderia aceitar corrida de ninguém, porque isso é um risco. Ele cancelou a viagem?Ele saiu empinando a moto e me xingando. Foi muito triste o que aconteceu. Até hoje eu não consigo esquecer. Fiquei com trauma, mexeu com o meu psicológico e nunca mais tive coragem de chamar uma moto por aplicativo. Já fui vítima de gordofobia outras vezes, em entrevista de emprego e no ônibus, mas desta vez eu decidi não sofrer em silêncio. Por isso, recorri à Justiça. A condenação trouxe um pouco de alívio?Nada vai amenizar o que senti e ainda sinto, mas tomei a decisão de recorrer à Justiça para que isso sirva de lição. Os passageiros não podem se calar diante de humilhações como essa. A empresa precisa fiscalizar quem são os seus profissionais. A gente merece respeito. Eu tenho 1,63 metro e peso 115 quilos, sei que estou gordinha, mas nada justifica o constrangimento que passei. Fui duas vezes na psicóloga e espero que um dia eu supere este trauma. Quando quero ir pra casa mais rápido, chamo motorista de aplicativo, mas de carro.Trechos da sentençaRelação de consumo“A relação entre as partes é de consumo, sendo regida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). A autora é consumidora do serviço e a ré, fornecedora. A responsabilidade da fornecedora é objetiva, conforme o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, o que significa que ela responde pelos danos causados independentemente de culpa, bastando a comprovação da conduta, do dano e do nexo de causalidade”.Dano moral “O dano moral, no caso, é inegável e inerente ao próprio fato, pois a situação vivenciada pela autora ultrapassa, em muito, o mero dissabor. Ser ofendida e humilhada publicamente em razão de sua condição física é uma violação direta à sua dignidade, honra e imagem, direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal”. Reparação“Para a fixação do quantum indenizatório, devem ser observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a extensão do dano, a capacidade econômica das partes e o caráter pedagógico da medida. O valor de R$ 20 mil pleiteado pela autora mostra-se elevado”. “Contudo, considerando a gravidade da ofensa discriminatória, fixo a indenização em R$ 8 mil , quantia que considero adequada para reparar o abalo sofrido e para servir de desestímulo a práticas semelhantes”.O outro lado“Não comenta”A empresa 99 foi procurada pela reportagem de A Tribuna e, via assessoria de imprensa, informou que não comenta decisão judicial. No entanto, consta na sentença que, em sua contestação, a ré “argumentou sua ilegitimidade passiva ao fundamento de que é mera intermediadora de tecnologia, conectando passageiros a motoristas autônomos, e não uma empresa de transporte”.Em outro trecho citado na sentença consta que “defendeu a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, a inexistência de sua responsabilidade civil por ser o ato de culpa exclusiva de terceiro (o motorista), com quem não mantém vínculo empregatício, e impugnou a ocorrência de dano moral”.