Teatros e espaços culturais estão na mira das demolições pelo poder público em São Paulo

A recente ordem de desocupação do  Teatro de Contêiner Mungunzá, sediado no bairro da Santa Ifigênia, centro de São Paulo, pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), alertou a classe artística e a sociedade civil sobre um possível desmonte do cenário cultural da cidade. Além do Contêiner, outros espaços de cultura da capital paulista também estão ameaçados de perderem seus espaços, seja por projetos da prefeitura ou por dificuldades de regularização junto ao poder público.

A reportagem ouviu grupos de teatro como o Vento Forte e o XIX que resistem a pressões imobiliárias e urbanísticas. O primeiro foi totalmente demolido em fevereiro deste ano e, até o momento, permanece sob escombros. A tradicional escola de samba Vai Vai também sofreu com investidas do poder público. Todos os agentes culturais ouvidos pela Agência Pública disseram que até tentam dialogar com Nunes e seus secretários, mas as tratativas não são bem sucedidas.

O teatro Contêiner recebeu uma notificação extrajudicial no último 28 de maio, que ordenava a desocupação do terreno em até 15 dias. Segundo o poder público, no local serão erguidos prédios de habitação popular. O local concentrava o “fluxo” da Cracolândia, mas amanheceu vazio depois de operações policiais.

O terreno, que fica na rua dos Gusmões, é da prefeitura, porém os artistas ocuparam o espaço, que estava abandonado, em 2016 e, desde então, tentam a regularização. Em um vídeo publicado pelo perfil oficial do Teatro de Contêiner, Nunes aparece ao lado do secretário de Cultura, Totó Parente, e do secretário municipal de governo, Edson Aparecido, que explica que na área “será construído, em parceria da prefeitura com o governo do estado de São Paulo, um projeto habitacional para trazer gente pro centro de São Paulo”.

Segundo a publicação do portal Uol, o projeto consiste em duas torres e uma área de lazer com quadra poliesportiva, playground, aparelhos de ginástica e uma praça. A construção deve ser feita por uma Parceria Público-Privada (PPP) municipal e a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab). Ainda não há informações sobre qual será o custo dessas unidades habitacionais, nem modalidades de financiamento.

Por que isso importa?

  • Desocupações de teatros pelo poder público levantam alerta sobre desmonte do cenário cultural da cidade;
  • Coordenadores dos espaços reclamam da falta de diálogo com o poder público.

Além dos mais de quatro mil trabalhos artísticos apresentados, o Contêiner também é palco de serviços de apoio social aos frequentadores da Cracolândia, que temporariamente se instalaram em uma praça ao lado.

“É inadmissível você desmontar um equipamento do impacto que tem na cidade e do país para construir mais um prédio na cidade”, diz um dos coordenadores do Teatro de Contêiner, Marcos Felipe.

A prefeitura de São Paulo informou por nota que o terreno ofertado tem “quase o dobro do tamanho da área ocupada atualmente.” Informou também que, neste ano, “foram feitas diversas reuniões com o grupo, além de repasses que somam R$ 2,5 milhões para as atividades do teatro pela atual gestão.” Leia a nota na íntegra.

Segundo Felipe, o grupo negou a oferta porque o terreno ofertado, na rua Conselheiro Furtado, na Sé, “não comporta 30% do que hoje é o teatro”.  “Também negamos porque a gente está vinculado ao território [a Santa Ifigênia]”, disse. “Depois disso, nós não tivemos mais nenhuma reunião com o poder público, e ainda estamos em uma articulação política junto a deputados e vereadores, deputados federais e estaduais, concomitante a uma defesa jurídica”, completou.

Outro teatro ameaçado na Zona Leste

Na Zona Leste de São Paulo, o Grupo XIX de Teatro também está sofre ameaças. Há 20 anos, a companhia tenta a regularização do espaço que ocupa, na Vila Maria Zélia, um complexo industrial desativado. Em janeiro deste ano, o INSS, a quem pertence o terreno, exigiu que o espaço fosse desocupado, o que fez com que eles recorressem à prefeitura de São Paulo. “E a resposta foi que não existe interesse da prefeitura em relação a isso”, contou o coordenador do grupo, Luis Fernando Marques.

Marques contou que, desde que Nunes assumiu a gestão, eles nunca conseguiram se reunir com o secretário municipal de cultura. “Essa gestão tem muito pouco apreço à cultura”, disse. Totó Parente, filiado ao mesmo partido de Nunes, foi nomeado em janeiro de 2025 e declarou ser “radicalmente de centro”.

Mesmo sem regularização, artistas do Grupo XIX montam espetáculos e oferecem oficinas no bairro do Belenzinho. “O nosso desejo era sensibilizar o poder público, no caso, a prefeitura e a subprefeitura do Belém, para pedir a posse desses espaços para o INSS, numa negociação entre poderes”, diz Marques.

Hoje quem tenta intermediar a negociação com o INSS é a Fundação Nacional das Artes (Funarte) que, segundo Marques, “se colocou  como uma parceira para tentar achar uma maneira de fazer o teatro permanecer ali.” “[A negociação] não acontece nem com a subprefeitura do Belém, nem com a Prefeitura. Não existe esse interesse, essa preocupação da manutenção do espaço, que hoje é considerado um ponto de cultura oficialmente pelos editais, que já foi fruto de 11 edições do fomento para o teatro”, disse.

Por nota, a prefeitura informou que a “não localizou qualquer pedido de reunião do grupo.”

Vai Vai sem quadra

Desde de dezembro do ano passado, a comunidade do Vai Vai, que há quase 100 anos ensaiava na Bela Vista, tem feito os seus treinos para o carnaval na quadra da escola de samba Uirapuru da Mooca, sediada no Tatuapé, onde paga um aluguel por cada dia de ensaio. A sede original foi demolida em 2020, por causa das obras da linha 6-Laranja do Metrô.

Os tradicionais ensaios de rua da agremiação ocorriam na rua São Vicente, próximo à praça 14 Bis, que lotava aos domingos e era ponto de encontro tradicional dos principais sambistas da cidade.

Durante entrevista à Pública, o diretor do departamento cultural da agremiação da Bela Vista, André Meira, listou ao menos 50 reuniões entre a direção da escola e representantes da prefeitura, desde 2022, na tentativa de apresentar uma proposta de construção para a nova sede social da escola de samba. “Estive pessoalmente nas reuniões com diversos secretários e nos gabinetes para tentar uma aproximação com o prefeito”, disse.

Logo que as obras da nova linha do metrô foram anunciadas, a agremiação saiu do seu tradicional endereço, mas com a promessa de que a Acciona, empresa que conduz as obras, compraria um novo terreno ainda na Bela Vista.

“Encontraram dois terrenos, entre a rua Rocha e a rua Almirante Marques de Leão, e os comprou. A própria Acciona fez contato com o proprietário, negociou e pagou o valor”, contou o diretor.

Meira disse que após o início das obras, moradores do bairro denunciaram ao Ministério Público que a instalação da nova sede poderia acarretar em problemas com o barulho, limpeza e aumentar a circulação de pessoas. Além disso, a área onde o terreno foi comprado, dentro da Lei de Zoneamento Urbano, é destinada à construção de moradias populares, logo, a nova sede não poderia funcionar no endereço.

Vai Vai, escola de samba quase centenária, está sem sede. Espaço tradicional foi desocupado em obras do metrô

Após diversas reuniões internas, o Vai Vai manifestou interesse em fazer uma permuta junto à prefeitura de São Paulo, em que o terreno cedido pela Acciona fosse trocado pela sede do Teatro Zaccaro, também na Bela Vista. A escola reformaria o espaço e o transformaria em um polo cultural e social, além da sua quadra de ensaios para o carnaval.

Contudo, a agremiação propôs uma condição: “a gente fez o estudo prévio e viu que a prefeitura consegue implementar 360 moradias para as famílias aqui da região central no nosso antigo terreno e principalmente para a população preta, que ocupa o bairro do Bixiga [na Bela Vista] historicamente”, disse o diretor.

Em maio deste ano, a diretoria do Vai Vai fez um convite direto a Nunes para um jantar, que ocorreria em 2 de junho, para apresentar a proposta de recuperação do Teatro Zaccaro, que poderia funcionar a sede social da agremiação com atividades culturais e sociais diversificadas, mas a equipe do prefeito recusou por e-mail.

Por meio de nota, a Prefeitura de São Paulo disse que “a proposta da escola de samba Vai Vai foi recebida pela gestão e um processo está em andamento para analisar a questão.”

Acervo de décadas virou entulho

Na Zona Oeste de São Paulo, tratores derrubaram, em 13 de fevereiro, a sede do grupo Ventoforte, fundado em 1974.  O teatro que resistiu com sua arte à ditadura militar (1964-1985), virou escombros na atual gestão de Nunes. A primeira notificação de despejo foi emitida pela prefeitura de São Paulo ainda em 31 de julho de 2023, sob alegações de irregularidades no uso do imóvel.

O ex-secretário municipal do Verde e Meio Ambiente, Rodrigo Pimentel Pinto Ravena foi quem primeiro ordenou a destruição da estrutura do teatro que por 50 anos contribuiu para o cenário cultural brasileiro, mas a demolição acabou acontecendo em fevereiro deste ano, já na gestão Nunes.

“Quando eu vi, os tratores estavam demolindo o nosso teatro. Foi assim que a gente ficou sabendo”, contou a artista e uma das integrantes do grupo Ventoforte, Márcia Fernandes.

A prefeitura informou que “todos os objetos, cenários, quadros, instrumentos e materiais que estavam no local foram retirados pelo responsável legal da estrutura irregular, com o apoio da equipe da Prefeitura”, mas o ator e filósofo Rodrigo Mercadante, que foi um dos diretores do grupo, contou à reportagem que, no dia da demolição, todo o acervo também foi destruído. “A gente foi pra lá para ver o que tinha acontecido. Na hora que nós chegamos, tinha acervo, quadros, pedaços de cenário, figurino, piano [destruídos]”, contou o artista.

Registro histórico de apresentação da peça “História de Fuga, Paixão e Fogo” do Vento Forte na década de 80

A primeira sede do Ventoforte foi no Rio de Janeiro, inaugurada por um grupo de artistas sob a direção de Ilo-Krugli, um artista cênico argentino, que viajou pela América Latina para conhecer a diversidade do continente.

Na década de 80, o grupo se mudou para São Paulo e ocupou parte de um terreno abandonado, na rua Brigadeiro Haroldo Veloso, no Itaim Bibi, área nobre da Zona Oeste paulistana, que 15 anos mais tarde, se tornaria Parque do Povo, um dos maiores e mais importantes da cidade, dentro de um dos metros quadrados mais caros do Brasil. Ali, o Ventoforte resistiu por quase 40 anos.

Por problemas internos na administração, o grupo perdeu força e as instalações sofreram com a falta de manutenção, o que levou a secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente a pedir a derrubada da sede, alegando que o espaço era utilizado para outras finalidades. Em uma vistoria técnica feita pela Secretaria do Verde, em 2016, constatou que houve uma mudança na planta original do teatro como “comércio de água de côco, aluguel de bicicletas e estacionamento para veículos”.

Segundo Fernandes, os problemas internos afastaram parte do elenco e os projetos sociais também acabaram, mas ele aponta que o poder público nem cogitou um projeto de recuperação. “A prefeitura fez vista grossa, porque o objetivo era a demolição. Então, quanto mais irregulares estivéssemos, melhor”, disse.

Por nota, a prefeitura de São Paulo afirmou que “mantém diálogo com representantes dos fundadores do teatro para definição do projeto do novo espaço cultural e esportivo no Parque Municipal do Povo, que neste momento está em fase de elaboração”.

Como era a entrada do teatro e os escombros que sobraram depois da demolição 

Parlamentares e artistas defendem o Contêiner

Antes da emissão do ofício que pedia a desocupação do teatro Contêiner, no centro da cidade, Felipe disse que procurou inúmeras vezes pelo secretário municipal de cultura, Totó Parente, mas nunca foi atendido. “Ele tem o meu contato e eu tenho o dele, mas só me ligou hoje [29 de maio], pela primeira vez, pedindo para eu aceitar as propostas do governo, porque ‘ele só cumpre ordens’”, contou o coordenador.

Para tentar reverter a ordem, o Contêiner apresentou uma planta de um edifício com moradia popular e que também pode abrigar o complexo do teatro. Os integrantes do grupo ainda aguardam um diálogo com a prefeitura para apresentar a proposta.

Artistas e parlamentares têm feito manifestações públicas contra o fechamento do Teatro de Contêiner e negligência na zeladoria de outros espaços ameaçados.

No dia seguinte à comunicação da desocupação, a direção do teatro recebeu a visita da deputada federal Sâmia Bomfim e da vereadora Luana Alves e as equipes do deputado federal Guilherme Boulos e da deputada estadual Ediane Maria, todos do PSOL, em forma de apoio. O ex-senador Eduardo Suplicy (PT) também publicou um vídeo em suas redes sociais.

Nesta quarta-feira, 11 de junho, a deputada Sâmia Bomfim fez o requerimento de uma moção de apoio ao teatro, em que ela convida outros parlamentares para se manifestarem a favor da continuidade das atividades do grupo no local onde estão instalados.

A atriz Fernanda Montenegro publicou uma carta, em seu perfil no Instagram, nesta terça-feira, 11 de junho, um apelo para que o prefeito Ricardo Nunes repense o fechamento do Teatro de Contêiner. “O Teatro de Contêiner, permanecendo nesse endereço da cidade de São Paulo, é um sinal de renascimento desse bairro”, escreveu. Nunes respondeu por meio de seu secretário de governo, que o “governo do estado e a prefeitura ofereceram locais para instalação do teatro com doação de área definitiva” e que  “as negociações continuam.”

Marcos Felipe teme uma ação sorrateira de reintegração de posse da prefeitura e montou um esquema de vigília entre os artistas para proteger o teatro. “Nós manteremos nossa programação diária. Todos os dias teremos apresentações. A programação do teatro se mantém até o final do ano, como já estava prevista, com apresentações de shows e projetos”, completou.

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