Dalton Trevisan completa 100 anos sem nunca ter concedido uma entrevista ou participado de eventos literários. O silêncio, cultivado por décadas, virou assinatura. Nenhuma aparição pública, nenhuma fotografia recente, nenhum prêmio recebido em mãos. Esse apagamento deliberado criou um enigma em torno do autor, comparado a um ser noturno: solitário, invisível, à espreita.
Dalton Trevisan é o “Vampiro de Curitiba” por ser um autor que, à semelhança de um vampiro, se mantém invisível, solitário, e extraindo das sombras da cidade as tramas curtas, cortantes e brutais que compõem sua obra — um mito literário forjado tanto por seu estilo quanto por seu silêncio.
Nas palavras do crítico Wilson Martins, “ninguém sabe como ele é — mas todo mundo reconhece sua mordida”. O apelido de Vampiro de Curitiba nasce desse mistério, mas se sustenta na obra.
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Curitiba: cenário de uma literatura crua e sombria
Trevisan nunca deixou sua cidade natal — e tampouco deixou de explorá-la em sua literatura. Curitiba, em seus contos, é menos uma cidade e mais uma paisagem moral: cinzenta, sufocante, hipócrita. Os personagens vagam por suas ruas como espectros: pequenos burgueses decadentes, esposas espancadas, adolescentes obcecados, velhos lascivos, canalhas banais.
Como um vampiro de moral duvidosa, o narrador de Trevisan suga da cidade seus instintos mais baixos — e os entrega ao leitor com um estilo seco e impiedoso.
Contos como punhaladas
A ficção de Dalton Trevisan se define pela concisão. Cada frase parece ter sido lapidada até o osso. Não há espaço para lirismo gratuito ou redenção sentimental.
Seu estilo sombrio e cortante se expressa por meio de uma prosa minimalista, seca, sem concessões sentimentais. Esse estilo “mordaz” contribuiu para a associação com a figura do vampiro — um ser que se alimenta do sofrimento e do lado oculto da existência.
Em O Vampiro de Curitiba (1965), livro que consolidou o apelido, o autor expõe o cotidiano medíocre e torpe de personagens aparentemente comuns. Reúne contos curtos, com personagens banais em situações cruas, onde a sordidez aparece disfarçada de normalidade. O narrador flutua como um voyeur impiedoso — ou um vampiro sentimental.
“Entra no banheiro, tranca a porta e se penteia com ódio. Sorriso no espelho: bom dia, meu canalha.” (conto “Mano”)
É o livro que melhor expõe o olhar cínico, clínico e brutal de Trevisan sobre a vida. Cada conto é uma punhalada rápida. Nada é sobrenatural — o vampirismo aqui é moral. A moral está sempre em ruínas, e o prazer — se existe — é sádico ou ridículo. O vampirismo aqui é ético e estético: uma dissecação da vida sem anestesia.
Amor, dor e escárnio: o vampiro doméstico
Em A Guerra Conjugal (1969), Trevisan transforma o amor em campo de batalha. São histórias de casais corroídos pela rotina, pela violência e pela incomunicabilidade. Escancara a brutalidade íntima com humor sujo e crueldade cotidiana, expondo como o romance pode se tornar um campo de batalha silencioso.
“E naquela noite — dia dos namorados — ele lhe deu uma surra de presente.”
É a ironia vampiresca do autor: extrair drama do banal, crueldade do cotidiano, brutalidade da família.
Microcontos, miniestocadas
Na coletânea Ah, é? (1994), Trevisan leva sua prosa ao extremo da concisão: microcontos e epigramas que, em uma linha, entregam o veneno. Uma espécie de “haicai da amargura”. Ideal para sentir o estilo cortante do autor.
“Ela disse sim. E logo arrependeu.”
Como um vampiro silencioso, ele dá apenas uma mordida e desaparece.
Um vampiro que envelhece — mas não amolece
Em Pico na Veia e Ave, Vampiro (2006), o autor retorna com o sarcasmo intacto, mas agora refletindo sobre a velhice, o vício e a decadência com o mesmo olhar cortante.
“Na velhice, até o vício pede arrego.”
Mostra o vampiro envelhecido, ainda lúcido, cínico e solitário, ruminando decadência com poesia amarga. Trevisan, aos poucos, assume o próprio mito: é o velho vampiro cansado, mas ainda faminto por narrar o grotesco.
Mulheres, miséria e silêncio
O livro Desgracida (2010) é um dos mais sombrios de sua carreira. A protagonista — uma mulher anônima, humilhada, sem saída — representa os limites do sofrimento silencioso. Obra concentrada numa figura feminina miserável e subjugada, uma mulher sem nome, humilhada até o fim.
“Quem ama bate. Quem apanha é que não sabe amar.”
É o lado mais sombrio e trágico da obra de Trevisan. O vampiro aqui observa uma vítima que nunca tem voz. Aqui, o vampirismo é pura observação do abismo, sem julgamento, mas com frieza cirúrgica.
O mito permanece — e o autor desaparece
Ao contrário de muitos escritores que se tornaram mitos pela exposição, Dalton Trevisan fez o oposto: sumiu. A invisibilidade virou presença. Seu nome virou lenda. E seus livros, dentes afiados.
O “Vampiro de Curitiba” não voa, não brilha, não morde pescoços. Mas nos observa, com ironia e desprezo, enquanto escreve sobre aquilo que preferimos esconder: a sordidez, a hipocrisia, o amor violento, o sexo triste, a banalidade do mal.
A “vampiresca” obra de Dalton Trevisan não envolve criaturas noturnas, mas o espreitar silencioso da miséria humana.
O olhar frio sobre o sexo, a dissecação das relações familiares, a banalidade da crueldade. A Curitiba que serve de cenário para um teatro de sombras. Ele é um vampiro não por beber sangue literal, mas por sugar das entranhas da cidade os fluidos morais que ninguém quer ver.
Trevisan é lido como se lê um bilhete anônimo deixado na porta: rápido, sujo, incômodo e — muitas vezes — verdadeiro.
Mesmo centenário, o vampiro segue vivo. E não quer ser visto. Apenas lido.
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