Após o incêndio ocorrido no ginásio de Campinas, supostamente provocado por pessoas em situação de rua, o prefeito de Goiânia, Sandro Mabel (UB), anunciou que a prefeitura irá ampliar o número de vagas nas casas de acolhida da capital. No entanto, ele deixou claro que pessoas monitoradas por tornozeleira eletrônica não serão mais aceitas nesses espaços.

“Na minha casa de acolhida lá, tenho 48 pessoas com tornozeleira. Não vai ter mais nenhuma. Não vai ter. Não vou aceitar. Lá não é local de ficar pessoa que está com pena alternativa. Ou ela fica na cadeia ou tem um endereço”, afirmou o prefeito.
Durante a declaração, Mabel reforçou sua posição: “Não podemos deixar a gente aqui, neste jeito, tornozeleira, soco para qualquer lugar, meu abrigo cheio de gente. Não vai ficar. Eu não aceito isso. Eu aceito cuidar de morador de rua. Agora, cuidar de bandido não é comigo. Isso é com polícia. É caso de polícia e de juiz, e não vai ficar na rua com ele”.
A declaração provocou reações e abriu debate sobre os limites entre segurança pública e direitos sociais. Mabel tem adotado uma postura firme em relação à população em situação de rua e afirmou que pretende retirar todas as pessoas em situação de rua da cidade até o final de 2025. Entre as ações previstas estão o acolhimento em comunidades terapêuticas, o oferecimento de passagens para retorno à terra natal e parcerias com o terceiro setor.
A exclusão de monitorados por tornozeleira eletrônica dos abrigos municipais levantou preocupações entre especialistas, que apontam possível violação de direitos humanos. Para eles, políticas públicas devem ser inclusivas e considerar a complexidade das vulnerabilidades enfrentadas por essa população, especialmente no que diz respeito à reintegração de pessoas que passaram pelo sistema prisional.
“É fundamental que as ações respeitem os princípios de dignidade e igualdade, garantindo que todos, independentemente de sua situação jurídica, tenham acesso a serviços essenciais”, apontaram especialistas ouvidos pela reportagem. “O equilíbrio entre segurança e inclusão social é crucial para o sucesso de políticas públicas voltadas à população em situação de rua.”

Atualmente, Goiânia conta com duas casas de acolhida — uma no Setor dos Funcionários e outra no Setor Leste Universitário, além de um abrigo emergencial instalado na antiga sede da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas), no Setor Aeroporto, e o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), na Alameda Botafogo, no Centro.
Nos abrigos, as pessoas acolhidas têm acesso a alimentação, banho, dormitório, atendimento psicológico e encaminhamento para cursos e oportunidades de emprego. Já o Centro Pop oferece suporte para alimentação, higiene pessoal, emissão de documentos, inscrição em programas sociais como o Bolsa Família e ações para inserção no mercado de trabalho.
Durante visita às unidades de acolhimento, a reportagem do Jornal Opção conversou com monitorados por tornozeleira eletrônica que criticaram as falas do prefeito. Para eles, as declarações são discriminatórias e contribuem para a exclusão social ao generalizar a conduta de reeducandos.
“Paguei meu crime, fiquei dez anos preso e a Justiça me concedeu o restante da pena em liberdade, mas não tenho para onde ir e estou no abrigo porque a minha intenção é mudar de vida, é arrumar um trabalho, e aqui me oferece tudo isso. Estou até fazendo curso de padeiro oferecido pelo Senai”, afirmou Fábio, acolhido em uma das unidades.
Servidores municipais das casas, ouvidos sob condição de anonimato, também se posicionaram contra a decisão. Segundo eles, a presença de monitorados por tornozeleira não representa, por si só, ameaça à segurança dos abrigos.
“Aqui tem gente que é viciado em álcool e em vários tipos de drogas, gente que comete pequenos delitos nas ruas, gente com problemas psicológicos, então não tem como ser um ambiente tranquilo. Nunca vi ninguém vender drogas aqui dentro, pois se quiserem, é só sair que encontram aí fora na calçada. Garanto a você que os que têm tornozeleira se comportam até melhor que os outros”, relatou um servidor.
Na opinião de Gustavo Pedrosa, servidor público estadual, o tratamento dado a pessoas monitoradas deveria ser mais rigoroso.

“Esse pessoal que comete crimes, para mim, deveria ser trancafiado e não ter nenhum contato com a população de bem. A justiça é muito leniente. Se fosse mais dura, teríamos menos crimes. Deveríamos ter uma justiça como a de El Salvador, que endureceu com os bandidos e transformou o país em um dos mais seguros do mundo.”
Tito Santos Pereira, 36 anos, eletricista que trabalha próximo a uma das unidades, reclama de confusões e incômodos.
“Se for tirar para levar para outro lugar, pode ser que resolva. Agora, tirar e deixar na rua, para a gente aqui é pior. Já cansamos de chamar a polícia. Eles entram na loja, atrapalham os clientes, já brigaram aqui, quebraram vidro, fazem xixi na porta. Pedem para carregar bateria da tornozeleira, e isso virou um problema. Lá na casa eles estão mais tranquilos. Ficar na rua é pior para nós.”

Pena Alternativa
A Justiça pode determinar o uso de tornozeleira eletrônica como uma alternativa à prisão preventiva, desde que sejam observados critérios como a gravidade do crime, o risco à sociedade e o histórico do acusado. A medida é prevista no Código de Processo Penal e tem como objetivo garantir que o investigado responda ao processo em liberdade, sem comprometer a ordem pública ou a instrução da investigação.
Na prática, a tornozeleira costuma ser aplicada em casos de menor gravidade, especialmente quando o réu é primário, tem residência fixa e não representa risco iminente à vítima ou à sociedade. Também é usada em situações que exigem o monitoramento de distanciamento, como em casos de violência doméstica.
A decisão cabe ao juiz do caso, que deve avaliar se a medida é proporcional e suficiente para garantir o cumprimento da lei.
Abrigados relataram à reportagem preocupação, insegurança e sensação de injustiça. Para abrigados que usam o dispositivo eletrônico, a fala do prefeito generaliza casos e ignora o direito de reintegração à sociedade.

José Alves, nome fictício, cumpre pena em regime semiaberto. Ele crítica a fala do prefeito: “O prefeito não pode impedir que a gente use o serviço das casas. Por que ele vai fazer isso com quem tem tornozeleira e não tem condição de estar num lugar? Como ele falou na televisão que vai tirar todos da casa. Para onde vamos se não temos para onde ir? O prefeito vai colocar a polícia para nos espancar?”, questiona.
“Se nós saímos da cadeia com tornozeleira, é porque temos o direito ao semiaberto. Se destruíram o semiaberto e a gente não tá lá dormindo, é porque a Justiça colocou assim. Então, o que vamos fazer? Meu caso é o caso de todos: um crime, um fato, uma infração. Eu fiquei 10 anos no fechado.”
João, 29 anos, também nome fictício, que já usou tornozeleira, é pai de duas crianças e vive nas ruas há muitos anos. Ele relata a dificuldade para cumprir as obrigações do sistema penal sem ter acesso a abrigos.

“Fica complicado para quem tem tornozeleira. Eles estão limitando a entrada nos abrigos, nos lugares onde a gente pode tomar banho, carregar a tornozeleira. Eles mesmo estão dificultando o modo de pagar a cadeia. Porque se não carregar, já dá infração”, explica.
“A primeira infração, tudo bem. Na segunda, na quarta, eles querem soltar um mandado. Como é que faz se a pessoa não tem como carregar? Nem todo lugar o povo deixa. O povo julga demais. “
João destaca ainda que os abrigos são fundamentais para quem está nas ruas: “O abrigo é bom. A gente precisa tomar banho, carregar a tornozeleira, ter alimentação. Quem tá com a tornozeleira é discriminado em todo canto e ainda o poder público quer fazer o mesmo com a gente?”
Fábio Alves, 45 anos, é natural de Goiânia e cumpre o restante de sua pena em liberdade. Ele participa de um curso de panificação oferecido aos abrigados em parceria com o Senai.
“Não concordo com a fala do prefeito porque tem muitos apenados que desejam realmente mudar de vida, e o prefeito não pode generalizar. Eu mesmo quero e vou mudar de vida. Não matei porque sou pistoleiro, foi uma situação que chegou a esse ponto.”
“O prefeito não está sabendo muito bem o que a gente está passando. Nós saímos do sistema, ganhamos um novo regime porque queremos uma outra oportunidade. Tem gente que não quer, mas tem muita gente que quer. Ele tem que vir aqui, ver e ouvir nós da tornozeleira. Eu mesmo não tenho família e preciso daqui.”

Sobre a afirmação do prefeito de que os apenados poderiam influenciar negativamente os demais abrigados, Fábio discorda:
“Isso é pensamento deles, não só deles, mas da sociedade. O que está aqui hoje são pessoas que estão trabalhando, que querem mudança de vida.”
Léia Maria dos Santos, mulher trans, está abrigada com o companheiro e utiliza tornozeleira. Para ela, o acolhimento foi essencial para reconstruir a vida.
“A casa contribui muito. A situação na rua é complicada, principalmente para nós que somos trans. Aqui, eles ajudam a fazer documentação, socorrem no que a gente precisa. Vim do interior e aqui me ajudam a me organizar.”
Léia também comenta sobre a desconfiança social: “Discordo e concordo com a fala do prefeito. Tem gente que nunca quer mudar de vida, e a gente paga pelos erros dos outros. Eu mesma estou pagando por um crime do ano 2000. Foi do meu primeiro esposo, que traficava. Eu respondia junto com ele porque era na minha casa. Depois disso, nunca mais cometi nada.”

Já Temis Totolis da Silva Pereira, 48 anos, natural de São Luís do Maranhão, não usa tornozeleira, mas também está no abrigo. Ele diz que a convivência é pacífica.
“A casa é uma bênção na minha vida. Somos bem assistidos por psicólogos e assistentes sociais. Tem regras, claro, mas se seguir, ninguém é desligado. Nunca tive nenhum problema com quem usa tornozeleira aqui. Nunca vi fazerem bagunça. Essas pessoas precisam de uma chance, precisam de um lugar para ficar.”

Juiz explica critérios para uso de tornozeleira eletrônica e situação de moradores de rua
O juiz Jesseir Coelho de Alcântara, titular da 3ª Vara dos Crimes Dolosos contra a Vida e Tribunal do Júri de Goiânia, explicou os critérios adotados pela Justiça para a aplicação de medidas cautelares, como o uso de tornozeleira eletrônica, especialmente em casos que envolvem moradores de rua.
Segundo o magistrado, a tornozeleira é uma alternativa à prisão em casos de crimes de menor potencial ofensivo. “As regras para que o juiz determine a medida cautelar, no caso do uso da tornozeleira, é quando a prática é de crime de menor potencial ofensivo. Então, ao invés de ficar preso, pode-se substituir a prisão pelo monitoramento eletrônico, para que o indivíduo não fuja do Distrito da Culpa”, afirmou.
Jesseir esclareceu que o equipamento precisa ser recarregado e que, caso o monitorado deixe o local onde deveria permanecer, a central de monitoramento é imediatamente alertada. “É uma forma de controle sobre o apenado ou sobre a pessoa que ainda não foi apenada, mas que está aguardando julgamento”, disse.
Um dos requisitos para a concessão da medida é que o acusado tenha residência fixa. “Exatamente por isso, porque senão ele não é encontrado. Quando alguém responde a uma ação penal ou está sendo investigado pela polícia, é necessário ter um endereço certo para ser localizado. Normalmente se exige, portanto, a comprovação de residência fixa”, explicou o juiz.

Sobre a possibilidade de aplicar a medida a moradores em situação de rua, Jesseir ponderou que não há uma regra fixa. “O fato de ser morador de rua não é suficiente, por si só, para determinar o uso da tornozeleira. Depende muito do caso concreto e do que consta nos autos. A posição do Ministério Público também influencia”, destacou.
Ele acrescenta que, apesar disso, o uso da tornozeleira pode ser recomendado nesses casos como forma de evitar que o indivíduo deixe a comarca. “O fato de morar na rua muitas vezes induz à aplicação da tornozeleira para que ele não saia do Distrito da Culpa, como, por exemplo, sair de Goiânia para outro local.”
Sobre os abrigos públicos, Jesseir afirmou que, embora em tese não sejam considerados residência, podem ser reconhecidos como tal em determinadas circunstâncias. “Se momentaneamente ele está naquele local como abrigado, então ali pode ser considerado, sim, uma residência. Mas o problema dos abrigos é que são sazonais, dependem do período. Isso também tem que ser analisado caso a caso.”
O juiz também comentou a decisão do prefeito que quer restringir o acesso de pessoas monitoradas por tornozeleira a abrigos públicos. “A medida do prefeito pode ter uma motivação política e não jurídica, talvez para evitar que os abrigos fiquem cheios de pessoas tornozeladas, já que, em tese, são pessoas que cometeram crimes e ninguém quer estar por perto. Mas essa é uma decisão política, não jurídica.”
Em síntese, Jesseir defendeu o uso da tornozeleira como um instrumento eficaz em alguns casos. “Penso que, numa situação em que é difícil localizar a pessoa, a melhor maneira é usar a tornozeleira, porque pelo menos se sabe onde ela está quando for necessário encontrá-la. O que ela não pode é deixar de comparecer em juízo quando for intimada.”
Defensoria Pública critica a proposta
O coordenador do Núcleo Especializado de Direitos Humanos da Defensoria Pública de Goiás, Tairo Esperança, criticou duramente a proposta do prefeito Sandro Mabel de retirar ou restringir o acolhimento de pessoas em situação de rua que usam tornozeleiras eletrônicas nos abrigos públicos de Goiânia.
Segundo Esperança, a Defensoria já se posicionou formalmente contra a proposta em reunião com a prefeitura. Ele destaca que a iniciativa fere garantias constitucionais básicas, como a presunção de inocência e o princípio da isonomia.

“Pessoas em situação de rua que usam tornozeleira eletrônica não estão condenadas; estão respondendo a processo e são inocentes até prova em contrário”, afirmou.
“Mesmo aquelas em progressão de pena estão cumprindo etapas legais e devem ter seus direitos respeitados.”
Esperança ressalta que os abrigos são destinados justamente a pessoas em extrema vulnerabilidade — sem moradia, higiene adequada ou alimentação regular.
“Negar esse serviço seria violar frontalmente a Constituição. Todas as pessoas são iguais perante a lei.”
Tráfico nos abrigos não justifica estigmatização
Sobre as alegações de tráfico de drogas dentro dos abrigos, Esperança reconheceu que há problemas de segurança, mas criticou a generalização e a estigmatização de pessoas com tornozeleira.
“Segurança pública é um problema complexo e generalizado. Tráfico pode ocorrer em frente a escolas, em presídios ou nos abrigos. Não se pode penalizar um grupo inteiro por crimes cometidos por alguns.”
Ele também alerta para a prática comum do crime organizado de utilizar pessoas sem antecedentes para o tráfico, o que derruba a tese de que o uso de tornozeleiras é um indicativo automático de envolvimento com crimes.

“Existe uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece a política de atenção a pessoas em situação de rua”, afirmou Tairo. “Essa norma deixa muito claro que, quando uma medida cautelar diversa da prisão é adotada — como nos casos em que a pessoa é liberada em audiência de custódia para responder ao processo em liberdade, não deve haver imposição automática do uso de tornozeleira eletrônica.”
Tairo destaca que o uso do equipamento não é obrigatório nesses casos. “O problema não é a pessoa estar ou não com tornozeleira. O próprio Judiciário tem orientado pela liberação sem o uso do dispositivo em muitos casos”, explicou.
O defensor rebateu diretamente a fala do prefeito. “Quando o prefeito diz que somente os que usam tornozeleiras estariam supostamente cometendo crimes dentro das casas porque estão cumprindo algum tipo de pena, ele mostra que desconhece totalmente como funciona o sistema judicial”, criticou.
Falta de estrutura para recarga das tornozeleiras
Outro ponto levantado por Esperança é a inviabilidade prática de impor tornozeleiras eletrônicas a pessoas em situação de rua, que não têm acesso regular à energia elétrica para recarga dos dispositivos.
“Essa é uma das razões pelas quais o Conselho Nacional de Justiça orienta que pessoas em situação de rua não sejam monitoradas por tornozeleiras, justamente por não terem onde carregá-las”, explicou.
“Em Goiânia, essa prática ainda persiste, o que revela um descompasso com as orientações nacionais.”
Questionado sobre critérios legais para restringir acolhimento, Esperança respondeu que apenas pareceres técnicos da assistência social podem indicar alternativas ao acolhimento — e nunca como punição.

“Restringir acesso sem análise técnica é ilegal. O serviço existe justamente para quem está em vulnerabilidade. O que pode ocorrer são casos pontuais com recomendação social específica, e ainda assim com alternativas de atendimento.”
A Defensoria já realizou diversas vistorias nos abrigos públicos da capital. Em uma delas, em parceria com o Ministério Público de Contas, foi constatada infestação de percevejos, superlotação e falta de estrutura.
“As casas seguem com problemas crônicos. Temos 50 vagas e quase 80 pessoas em uma das unidades. Falta estrutura, atividades de inserção social, e há regras muito rígidas para entrada e saída.”
Política pública é considerada deficitária
Para o defensor, a política de atendimento à população em situação de rua em Goiânia é extremamente deficitária. “Temos apenas dois abrigos, ambos com estrutura precária. O Centro POP, que deveria ser um espaço de encaminhamento e dignidade, já chegou a oferecer alimentação de forma improvisada, com pessoas comendo em pé na rua.”
Ele defende uma política pública alinhada com o plano nacional, com foco em dignidade e reinserção social.
Possíveis medidas jurídicas
A Defensoria pretende, inicialmente, manter o diálogo com a prefeitura. No entanto, caso as propostas avancem e os direitos sejam violados, outras medidas serão adotadas. “Nosso limite é a violação de direitos. Se for necessário, podemos emitir recomendações ou até entrar com ação civil pública.”
Direitos humanos da OAB diz que medida é inconstitucional
O advogado Gustavo Nogueira Filho, conselheiro da OAB-GO e presidente da Comissão de Direitos Humanos da seccional, classificou como “preocupante” e “inconstitucional” a decisão do poder público de Goiânia. Segundo ele, a medida viola direitos fundamentais e representa um “grave retrocesso” na política de assistência social.
“A tornozeleira eletrônica pode ser determinada como medida cautelar diversa da prisão, conforme o artigo 319, inciso IX, do Código de Processo Penal. Ela deve ser aplicada quando outras medidas forem insuficientes para garantir a ordem pública ou o cumprimento da lei penal, sempre com base no caso concreto”, explicou.

Para Gustavo, a ausência de residência fixa, comum em pessoas em situação de rua — não impede legalmente a concessão da monitoração eletrônica, embora possa dificulte sua fiscalização. “Essa avaliação cabe ao juiz, que deve ponderar se o monitoramento eletrônico é eficaz mesmo sem um endereço fixo. Mas a lei não estabelece a residência como requisito absoluto”, afirmou.
O advogado alerta que a retirada dessas pessoas dos abrigos públicos compromete a própria eficácia da medida judicial e agrava a vulnerabilidade dos indivíduos. “Estamos diante de uma punição dupla: além de monitorados, eles são privados de um direito básico, que é o acolhimento social. Isso dificulta o acesso à alimentação, à saúde, ao carregamento do equipamento e pode até levar à prisão por descumprimento involuntário das condições impostas pela Justiça.”
Gustavo destaca que a prática fere diversos princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da individualização da pena. “É uma medida que atinge um grupo específico — pessoas monitoradas e em situação de rua, sem qualquer razoabilidade. Isso tem forte caráter discriminatório e não encontra amparo legal.”
O especialista também aponta possíveis consequências jurídicas para o município: “O poder público pode ser responsabilizado civilmente e até por improbidade administrativa. Dependendo do caso, pode haver inclusive responsabilização penal, se for comprovado dolo e individualização da conduta dos gestores.”
Segundo ele, não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer norma que permita a exclusão generalizada de pessoas monitoradas dos serviços de acolhimento. “É uma prática ilegal, inconstitucional e desumana. A dignidade da pessoa humana deve ser garantida mesmo a quem está preso ou condenado. Negar abrigo por causa da tornozeleira é algo cruel, que precisa ser revisto.”
Como alternativa, Gustavo sugere que o município adote protocolos específicos e humanizados. “É possível manter o acolhimento com acompanhamento individualizado, regras claras, articulação com o sistema de justiça e a criação de vagas direcionadas. O caminho deve ser o fortalecimento da rede de apoio, não a exclusão.”
Ele conclui reforçando o papel das instituições de defesa de direitos: “A OAB, a Defensoria Pública e o Ministério Público têm legitimidade para intervir, denunciar e acionar judicialmente em nome da coletividade. Quando se fere um direito humano, fere-se o direito de toda a sociedade.”

Secretária nega exclusão e defende protocolo conjunto para acolher população em situação de rua
A secretária de Políticas para as Mulheres, Assistência Social e Direitos Humanos de Goiânia, Eerizania Freitas, afirmou que a fala do prefeito Sandro Mabel sobre a retirada de pessoas monitoradas por tornozeleira eletrônica dos abrigos não deve ser interpretada como excludente. Segundo ela, a gestão municipal está construindo um protocolo conjunto para atender a população em situação de rua, com foco na segurança e no respeito à dignidade.
“Temos que entender a complexidade quando falamos em políticas públicas para quem está em situação de rua”, afirmou. “Há pessoas que precisam de acolhimento, outras de comunidades terapêuticas, retorno ao município de origem, qualificação profissional ou escolarização.”
A declaração ocorre em meio a críticas à fala do prefeito sobre episódios de violência envolvendo essa população, como o registrado no setor Campinas, onde, segundo Eerizania, houve riscos à integridade de pessoas vulneráveis. “O prefeito ficou indignado ao ver pessoas vivendo em condições insalubres, inclusive com uso de oxigênio. Ele solicitou que fossem acolhidas de forma segura”, disse.

A secretária reforçou que não há intenção de excluir usuários monitorados. “Não estamos rotulando ninguém. Mas, em uma casa com 50 vagas, mais de 40 são ocupadas por pessoas com tornozeleira. Isso impede que outros tenham acesso ao serviço”, pontuou.
Ela também destacou que há registros de ameaças, crimes e intimidações em abrigos. “Temos boletins de ocorrência, testemunhas, e servidores que já manifestaram desejo de sair por medo. Pensamos na segurança de todos: dos acolhidos e das equipes técnicas”, afirmou.
Eerizania confirmou que uma reunião com Judiciário, Ministério Público, Polícia Penal, Defensoria Pública e entidades da sociedade civil está marcada para o dia 11 de junho. O objetivo é discutir estratégias e responsabilidades diante da presença de pessoas com medidas judiciais nos serviços assistenciais. “O município não tem acesso a informações judiciais desses usuários. Esse diálogo em rede é essencial”, declarou.
A Prefeitura, segundo ela, tem intensificado ações como abordagem social, distribuição de cobertores no frio, ampliação de abrigos e incentivo ao uso do Centro POP. “Temos pessoas concentradas em frente aos abrigos que recusam acolhimento. Mesmo assim, oferecemos alimentação, roupas e atendimento, na lógica da redução de danos”, explicou.
Eerizania ressaltou que Goiânia tem mais de 3 mil pessoas em situação de rua, segundo dados do Cadastro Único e do SUPS, sistema criado em 2023 para monitoramento da proteção social. Mais da metade, segundo ela, é de fora da capital. “Vamos oferecer passagem para quem quiser voltar à cidade de origem, com contato prévio com a rede local de assistência.”

A secretária também anunciou a ampliação da rede de acolhimento, de duas para quatro casas de passagem, convênios com comunidades terapêuticas e novos credenciamentos para o terceiro setor. “O prefeito assumiu a responsabilidade de enfrentar o problema, e nossa meta é garantir dignidade e a inclusão de todos em programas sociais.”
Por fim, ela garantiu que a gestão municipal não se furtará ao debate. “Vamos chamar todos os órgãos para construir um protocolo de atendimento. Não vai ser por falta de investimento ou diálogo que as pessoas continuarão em situação de rua.”
GCM aponta uso de tornozeleiras eletrônicas por traficantes infiltrados entre população em situação de rua
O comandante da Guarda Civil Metropolitana de Goiânia (GCM), Gustavo Toledo, afirmou que a presença de pessoas usando tornozeleiras eletrônicas em meio à população em situação de rua tem contribuído para o aumento do tráfico de drogas e da violência nas ruas da capital.

O comandante comentou o início da operação determinada por Sandro Mabel, denominada Operação Tráfico Zero.
“As falas do prefeito foram no sentido de que há cidadãos com tornozeleira eletrônica que fomentam o crime e o tráfico de drogas entre os moradores de rua”, explicou Toledo. “Dessa forma, estamos realizando ações de inteligência em aglomerados onde percebemos que a presença desses indivíduos traz um potencial ofensivo à sociedade.”
Segundo ele, há casos em que esses indivíduos cooptam pessoas em situação de rua para atuar como “mulas” do tráfico. “É o sequestro do morador de rua, que passa a traficar para o criminoso. Ele carrega pequenas porções para uso pessoal, mas, para consumir, é obrigado a vender para outros moradores”, relatou.
Toledo destacou que, a partir do trabalho de inteligência, duas operações já foram realizadas com foco nesse público. “Uma delas foi na Praça do Trabalhador, onde conseguimos deter um traficante, e outra na Rua S, que resultou na detenção de três pessoas, entre elas um foragido do sistema prisional que usava tornozeleira eletrônica”, informou.

O comandante disse que as ações serão intensificadas com o uso de inteligência para mapear pontos de aglomeração e atuação do crime. “Vamos continuar identificando esses polos e retirando dessas áreas as pessoas que usam tornozeleira eletrônica e fomentam o crime. Com isso, conseguimos realizar um trabalho social mais amplo com os moradores de rua e atender às necessidades deles, sem a presença desses elementos que insistem em permanecer entre eles apenas para promover o crime na capital”, afirmou.
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