A palavra ‘descarte’ é sonoramente repulsiva. Percebe-se o afastamento na cara de quem pronuncia: des-car-te. Tudo que não serve mais é descartado, retirado, posto de lado. As quase sete toneladas de resíduos sólidos que Goiás produz diariamente são jogadas no lixo, que não desaparece quando é colocado do lado de fora de casa. O lixo segue pelas mãos de quem o transformou em renda e luta para não ser descartado junto com ele.
Os catadores de recicláveis vivem da venda do material que é triado por eles. Esse material que pode ser reciclado é retirado de casas e indústrias como lixo, mas é fonte de renda. Durante a triagem, os catadores dividem espaço com sacos e latões: pet branco e pet verde são produtos diferentes, plástico branco e plástico misto (o colorido) também, copos descartáveis, latinha, papel branco, papel colorido, garrafinhas. Todos são separados manualmente.
Não se sabe quantos catadores de recicláveis atuam em Goiás. A falta do número é justificada pela formalização, que ainda não dominou a classe que fez carreira nas ruas, enquanto autônomos. As estatísticas só conseguem contabilizar as 103 organizações de catadores formalizadas no Estado. Desses, há quem trabalhe individualmente e quem participe de cooperativa, fato é que todos são empresários.
Por vezes resumidos a ações de assistência social ou ao trabalho marginalizado, os catadores de recicláveis são empresários, na prática. Eles não tem salário fixo ou recurso garantido, e operam negócios que movimentam toneladas de resíduos diariamente.
Serviço (não) remunerado
Divino Teles Guimarães foi carroceiro por 5 anos, catando lixo nas ruas de Rio Verde. Hoje, é presidente da maior cooperativa de reciclagem de Goiás, a Coop-Recicla. A cooperativa tem contrato com a Prefeitura de Rio Verde e tria os recicláveis da cidade. Para ele, existe um preconceito por parte dos governantes que resumem os catadores a pessoas analfabetas e desorganizadas. Mesmo sendo os maiores entendedores do processo, são tratados como incapazes.
“Eu já ouvi isso de muitos prefeitos. Por um lado, algumas cooperativas realmente precisam dessa assistência social para ensinar eles a serem empreendedores, eu sei disso. Mas nem por isso vai abandonar, a gente abandona lixo, pessoas não”, disse.
Em Goiânia, a Cooper Rama recebe um caminhão por dia da coleta seletiva. Sem contrato, a Prefeitura trata a situação como uma doação às 11 cooperativas que recebem material na capital, enquanto os catadores sentem que fazem um trabalho não remunerado. Para a presidente da cooperativa, Dulce Vale: “a gente virou praticamente um depósito para eles. O município traz, a gente tria. Está se usando a mão de obra a nenhum custo”.

Essa remuneração não é obrigatória por lei. No entanto, para o coordenador de Relações Institucionais do Sistema OCB/GO, Emanuell Lopes, quando as cooperativas de reciclagem são incluídas no processo de coleta seletiva da cidade, “está tirando pessoas da condição de vulnerabilidade do lixão, amenizando o problema ambiental e a prefeitura está economizando, porque leva menos lixo para os aterros”.
“Os catadores são agentes ambientais, herois, mas estão invisíveis. Por isso que deve ter o pagamento por serviço ambiental. É melhor você pagar isso do que ir para a natureza, contaminar, gerar doença”, afirmou Divino.
De 2020 a 2023, Goiás produziu 117 mil toneladas de recicláveis e recuperou 58,7 mil toneladas (dentre papel, metal, plástico e vidro), segundo a Secretaria da Retomada. Essa pauta ambiental ganhou força após a ordem de fechamento dos lixões de Goiás, uma batalha do Ministério Público que perdura há mais de 15 anos. Por isso, a pasta chegou a estruturar 18 cooperativas em 16 cidades.
“Algumas cidades funcionaram bem, outras estão com dificuldade porque a prefeitura não contratou a cooperativa de catadores para a triagem da coleta seletiva do lixo. Então, cidades que fizeram esse trabalho saíram na frente. Algumas prefeituras preferiram fazer uma licitação e contratar uma empresa de fora que não tem essa preocupação social. Tem que ser todo mundo junto para essa turma prosperar”, afirmou o secretário César Moura.
Para o secretário, em um ‘mundo ideal’, as cooperativas deveriam participar de todos os processos da reciclagem: coleta, esteira, prensa e envio para empresas que transformam o material em algo novo. Divino, catador, acredita que os municípios deveriam priorizar as cooperativas, que têm experiência no processo, já que precisam contratar quem preste esse serviço. A invisibilidade perdura quando as cooperativas não são vistas como empresas pelo poder público.

“Ganhamos cinco vezes. Se a gente fizer um contrato de prestação de serviço, a gente ganha uma vez. A gente separa esse material eganha de novo. Ganha com a logística reversa. Ganha prestando serviço para o grande gerador e agora podemos ganhar também industrializando e agregando valor nesse material. Então, é gestão, resíduos sólidos nunca foram o problema. É uma grande oportunidade dos municípios fazerem políticas públicas com resultado”, disse.
O Consórcio Limpa Gyn foi questionado, mas não respondeu até a última atualização desta matéria.
Catador é parte de um ciclo
Os catadores defendem que a logística reversa é cíclica e precisa que todos os envolvidos – população, cooperativas, empresas, entidades e governos – atuem ativamente para que este funcione e não colapse. Divino garante: o resíduo não some. “Vai para algum lugar: ou para o meio ambiente para contaminar, ou para uma cooperativa onde a destinação é correta. Existe uma cultura de que resíduo, quando não te serve mais, virou lixo. E não é assim, ele ainda é matéria-prima e tem que retornar para o ciclo produtivo e ser reaproveitado”, disse.
Para uma coleta seletiva mais eficaz, a população também precisa organizar o que descarta em casa. “Você não tem que separar o seu lixo, basta não misturar. A gente está complicando coisas simples de fazer. No supermercado, na despensa, na geladeira, está tudo organizado e separado. Aí na hora de descartar você mistura tudo?”, questiona Divino.
Um material limpo tem mais valor agregado para os catadores. Dulce afirma que se o material chegar com qualidade inferior, os catadores gastam mais tempo para separar, têm menos volume e ganham menos. Isso reflete diretamente nos salários dos cooperados, que dividem o que foi arrecadado. Para Divino: “tudo o que você descarta tem um valor agregado. Se você separar, eu vendo, vou lá no supermercado e compro a minha cesta básica, isso é dignidade”.

O vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (Fieg), Flávio Rassi, que também preside o Conselho de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Cmas) foi questionado sobre o papel das indústrias nesse processo, já que estas produzem o material que depois é vendido e descartado. Segundo ele, as indústrias analisam o resíduo sólido financeiramente. “Sempre está querendo conter o desperdício, eles querem consumir a menor quantidade de insumo e matéria-prima possível e não desperdiçar isso jogando o produto para o final do processo produtivo”, disse.
“A gente tem dificuldade desde a separação disso dos nossos lares; nas indústrias e empresas é mais fácil, eles vendem isso. A gente precisa de uma política pública mais assertiva para que as pessoas entendam o papel de cada um. Mesmo que o resíduo não possa ser reaproveitado, ele tem que ter a destinação correta”, afirmou Flávio.
Goiânia já foi considerada a terceira capital do Brasil com melhor índice de coleta seletiva, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2019. Este ano, Goiânia é a terceira pior capital em limpeza urbana, de acordo com levantamento da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).
“Todo mundo se esquiva. Mas todo mundo usa e produz lixo. Todos os dias”, disse Divino.
A Secretaria de Estado do Meio Ambiente negou entrevista solicitada pela redação.

Cooperativas e formalização
A formalização é defendida por Euclides Barbo Siqueira, presidente da Junta Comercial do Estado de Goiás (Juceg), entidade responsável por esse processo. Ele afirma que, antes da movimentação para cadastro dos catadores, as políticas públicas não os atendiam porque o Estado não conhecia as demandas da classe. “Ele é um empresário mas a gente não os conhecia. Com essas pessoas que se organizaram, temos conhecimento e podemos trabalhar formas de ajudar esse público”, disse.
Segundo o Sebrae, 1.214 empresas empreendem na coleta de resíduos em Goiás, sendo que os pequenos negócios (MEI, ME e EPP) representam 93% desse número. Para Divino, da Coop-Recicla, a cooperativa “mudou a realidade dos catadores” quando foi acolhida por essas instituições. “Nos valorizaram”, disse.
Hoje existem 34 cooperativas de reciclagem ativas em Goiás, segundo a Juceg. “As cooperativas têm essa oportunidade de estar melhorando. A gente fica às vezes marginalizado, os próprios catadores precisam buscar qualificação, estar filiado na OCB, em uma entidade organizada, ter sua documentação. Ajudar essas cooperativas a ter acesso a essas oportunidades e se tornar empresário ativamente”, afirmou ele.
Sobre a documentação, o Emanuell, da própria OCB, afirmou que “a quantidade de material que a cooperativa recebe é tão pouco que eles mal conseguem uma remuneração mínima, às vezes não chega nem um salário mínimo. Para que ela possa se estruturar melhor, é preciso que ela tenha recurso”. Para que isso seja possível, o ciclo todo precisa funcionar para que as cooperativas tenham mais material para vender mais e fazer caixa, ou o recurso precisaria partir da esfera pública.
“A OCB ajuda em tudo isso, mas não tem dinheiro em caixa. Por exemplo, a cooperativa precisa de uma licença. Às vezes elas não estão tendo dinheiro para comer. Como é que ela vai tirar o recurso lá deles para pagar uma licença?”, perguntou. De acordo com o Sebrae, são 103 organizações de catadores no Estado trabalhando com resíduos sólidos. Assim, os catadores desejam o reconhecimento profissional como microempreendedores.
“Chegamos ao limite. Não é nem fundo do poço, é o topo do lixão”, disse Euclides.

Nota da Prefeitura de Goiânia
“A Secretaria de Administração (Semad) informa que realiza doações de bens inservíveis exclusivamente por meio de credenciamento de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e entidades filantrópicas, conforme critérios estabelecidos em edital público. O processo não envolve repasse financeiro nem a formalização de contrato administrativo.”
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