José Antonio Spinelli, um intelectual da nossa geração

Na mais recente quarta-feira 21 de maio, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte prestou uma comovente homenagem ao professor José Antonio Spinelli. Estavam presentes colegas professores, alunos, ex-alunos, esposa e filhos.  E no seu melhor modo de ser, o homenageado realizou uma aula-conferência.

José Antonio Spinelli é professor titular de Teorias Sociológicas da UFRN. Atua na graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado). Docente e pesquisador, com pós-doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais pela UFPB.

Para quem não o conhece, entre outros trabalhos, este intelectual da nossa geração no Recife escreveu e publicou o ensaio “Memória de afetos: cultura e revolução no Recife do tempo de Soledad Barrett Viedma”. O texto ilustra a sua dimensão e horizonte Memória de afetos: cultura e revolução no Recife do tempo de Soledad Barrett Viedma . Alguns trechos: 

“Vivemos uma geração de jovens que no processo de se tornarem adultos tinham a revolução socialista como projeto de vida.

O desfecho da história narrada em ’Soledad no Recife’é conhecido: a prisão dos seis militantes em diferentes pontos da cidade, a montagem do palco para simular um confronto armado que não aconteceu, a cobertura da imprensa reproduzindo a versão oficial.

O corpo de Soledad foi reconhecido pela advogada Mércia Albuquerque, ativista de direitos humanos no Recife, juntamente com um feto, filho de Anselmo. Na melhor das hipóteses restaria aos militantes da esquerda armada o exercício de uma luta defensiva para resguardar seus companheiros e se preparar para um futuro mais promissor.

A cidade do Recife era naqueles anos um barril de pólvora. Fundada pelos portugueses em 1537, foi modernizada por judeus holandeses no século XVII para ser destinada ao mercado mundial, eixo militar, comercial e financeiro da colônia sul-americana dos flamengos. Ao longo de sua história Recife foi ‘la fiancée des révolutions’. Centro de conspirações, de comércio, de política, de revoluções culturais. Cidade nordestina, litorânea, receptiva aos influxos culturais vindos de outros centros da região, um tipo de metrópole tropical com aguda consciência de sua singularidade.

Na capital pernambucana, no clima de medo e delação instituído no pós-64, em cada esquina, em cada barzinho, em cada aglomerado de pessoas esperando o transporte coletivo, em cada travessia de suas inúmeras e belas pontes sobre o rio Capibaribe, em cada sala de aula, cinemas, eventos culturais, ou simples ajuntamento inadvertido de gente para conversar, podia-se flagrar o olhar cínico e soturno de um alcaguete de polícia.

Era nesse clima que estavam mergulhados os personagens de ‘Soledad no Recife’, espicaçados e traídos pela ousadia cínica e fácil do agente infiltrado Cabo Anselmo”

Mas na quarta-feira 21 de maio de 2025 foi extraordinário que, a partir destas anotações pessoais, íntimas, ele as transformou no coletivo de uma aula-palestra:

“Minhas origens familiares, meus primeiros anos de vida. o universo mais próximo. O Grupo Escolar Dom Sebastião Leme estruturado segundo as ideias do movimento da Escola Nova (As aventuras de Tom Sawyer, minha primeira leitura impactante)

A comunidade de amigos que se constituiu para toda a vida, Urariano Mota, Zanoni Caralho, Arlindo Melo, Otaciel Melo, a esses foram se juntando outros: Alfredo Filho, Fernando da Mota, Paulo Carneiro (o Capitão América), Walter Rocha.

O Gymnasium Pernambucano (Colégio Estadual de Pernambuco) e a opção pelo curso clássico visando a Faculdade de Direito

O trabalho na Celpe e na Petrobrás e o pedido de demissão para me dedicar à carreira de professor

A opção pela Sociologia: Profa. Eliane Apolinário, Prof. Manuel Correia de Andrade, Prof. Adauto Pontes; a professora de ciências; conferências do Prof. Sílvio Maranhão (UFPE) sobre a escravidão e do Prof. Vamireh Chacon (Faculdade de Direito do Recife) sobre a filosofia de Herbert Marcuse

A graduação em Ciências Sociais na Universidade Católica de Pernambuco, a Católica. tendo sido colega de turma de Fernando Azevedo, Janete Castro, Márcia Santa Cruz, Maria Edwirgens. Os trabalhos solicitados pelo Prof. José Rafael de Menezes

Interesse por teatro, cinema, literatura estruturaram minha visão de mundo, minha sensibilidade e minha postura ética, atento à exploração e dominação de classe (desde cedo me identifiquei com a opção política pelo socialismo) e assumi uma postura crítica frente à dominação racista, à sujeição das mulheres, à discriminação contra os LGBTs”. 

De tais anotações, da organização da sua intimidade, brotou uma palestra para os aplausos finais prolongados, todo mundo de pé uma verdadeira ovação.

É claro que esse momento de emoção, inscrito entre suas últimas intervenções pedagógicas na UFRN, é uma foto recente do filme da sua vida. José Antonio Spinelli é tão marcante para nós, adolescentes pobres do bairro de Água Fria, que tentei me aproximar da sua genialidade ao compor o personagem Zacarelli,  no romance “A mais longa duração da juventude”. Deixo com os leitores esta breve página:

“Zacarelli pergunta:

– Iza está lá?  Vamos embora. É a minha proposta. – E se dirigindo a mim: – Iza tem umas amigas do curso de medicina, que sempre andam com ela. Com certeza, estão em Porto de Galinhas. Que me dizes?

– Você sabe onde fica Porto de Galinhas? – pergunto.

– Não – ele responde. – Mas sei que onde Iza e cervejas estiverem, lá estará o ´nosso paraíso.

Todos riem. E vencido pela felicidade que virá, levanto o copo:

– Vamos pra Pasárgada?

– Vamos!

Saímos rápido, às 4 da manhã, porque já estávamos atrasados. Pasárgada não podia esperar.

Mas no carro baixa em Alberto um súbito espírito de sensatez:

– O que é que eu vou dizer em casa?

– Que está com os amigos – respondemos todos ainda em gozo da libação do bar de onde saímos. 

– Tinha graça – ele responde sombrio e sensato. – Isso é exatamente o que papai não aceita. Ele sabe quem são meus amigos.

Mas Zacarelli tem os olhos na esperança do encontro com Iza. E não recua:

– Calma, Alberto. Eu tenho uma solução. Você dirá que teve que ir a um enterro, entende?

– Que enterro, Zacarelli? Um enterro sem aviso? Papai é esperto.

– Deixe um bilhete na porta – Zacarelli responde.

Então a esperança, movida pela solução imaginosa, em mim se renova. E pergunto, para amarrar melhor a mentira:

– Enterro de quem? Nome, onde?. – E Zacarelli, genial, responde:

– Morreu o tio Damião. De infarto do coração.

–  Infarto é de repente. – Alberto fala. – Mas por que vou pra casa avisar e depois volto pro enterro?

– Meu amigo, e o velório? – Zacarelli defende. – E o velório? Nós somos cristãos e cumpridores do rito fúnebre.

Todos gargalham.  Quando o carro para, ainda está escuro. Os malditos cachorros latem na vizinhança da casa do pai de Alberto. Mas quem vai pra Pasárgada tem pressa. Arrancamos com dedos ágeis e precisos uma folha de caderno e nela Alberto escreve: “Morreu o tio Damião / de infarto do coração”. Empurra a folha por baixo da porta,  volta e liga o carro. A caminho de um lugar que não sabemos onde fica, me ocorre:

– Zacarelli, o bilhete tem rima. Essa mentira não cola.

– É que já pensamos na forma poética – ele responde”.

E a viagem continuou, continua. Até hoje.

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