Estado brasileiro anistia e pede perdão a Dilma por perseguição na ditadura

A Comissão Nacional de Anistia reconheceu a condição de anistiada política e pediu desculpas, em nome do Estado brasileiro, à ex-presidenta Dilma Rousseff pela perseguição a que foi submetida durante o regime militar. A decisão foi tomada em sessão realizada nesta quinta-feira (22).

O voto proferido pelo relator Rodrigo Lentz — uma forte e histórica peça de defesa da democracia e dos direitos humanos — foi acompanhado por unanimidade pelos 12 conselheiros.

“Excelentíssima senhora presidenta Dilma Vana Rousseff: esta Comissão, pelos poderes que lhe são conferidos, lhe declara anistiada política brasileira e, em nome do Estado brasileiro lhe pede desculpas por todas as atrocidades que causou o Estado ditatorial — à senhora, à sua família, aos seus companheiros de luta e, ao fim e ao cabo, como disse o relator, a toda a sociedade brasileira”, declarou a presidenta da Comissão, Ana Maria Lima de Oliveira, ao final da sessão.

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“Queremos também”, continuou a presidenta do colegiado, “lhe agradecer pela sua incansável luta pela democracia brasileira e pelo povo brasileiro. Muito obrigada pela senhora existir e ser essa mulher, como lhe chamam, Dilma Coração Valente”.

Além do valor histórico da condição de anistiada política — o que significa o reconhecimento oficial de que Dilma foi arbitrária e brutalmente penalizada por se opor a um regime autoritário, sofrendo torturas e danos psicológicos, políticos e laborais —, o voto defendeu o pagamento de indenização de R$ 100 mil, em parcela única.

O valor é simbólico e busca repor minimamente parte dos prejuízos trabalhistas que Dilma acumulou devido à perseguição que sofreu. O cálculo considerou o período de 3 de março de 1969 a 5 de outubro de 1988, o que levou a indenização ao teto legal de R$ 100 mil. Presidenta do Banco dos Brics, Dilma não pôde estar presente à sessão, em função de compromissos da instituição.

O julgamento diz respeito a requerimento de reconsideração, apresentado pela ex-presidenta em novembro de 2024, após ter seu pedido indeferido pela Comissão de Anistia em 2020, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), apoiador de torturadores e da ditadura. Sob seu comando, a Comissão foi desmontada e teve seu objetivo original deturpado.

Anistia cidadã

Sessão da comissão que anistiou Dilma Rousseff. Foto:
Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Em seu voto, Rodrigo Lentz defendeu o conceito de “anistia cidadã” — que vem sendo adotado pela Comissão, com exceção do período em que a extrema direita esteve no poder, e que tem como base posicionamentos jurídicos usados dentro e fora do país em processos de justiça de transição.

Tal conceito, salientou, “rompeu com a visão restrita e meramente indenizatória”, propondo uma concepção “ampliada, multidimensional e estruturante da anistia política”.

O relator listou os três principais pilares do conceito no caso brasileiro. O primeiro, enfatizou, é que a anistia, vista especialmente a partir dos valores estabelecidos pela Constituição de 1988, “é uma conquista democrática e um direito individual e coletivo em razão de violações de direitos fundamentais promovidas pelo Estado autoritário por motivação política, de índole político-institucional, e constitui uma responsabilidade extraordinária do Estado nacional”.

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Portanto, acrescentou, “não se trata de um gesto de clemência do Estado ou, ainda, uma espécie de acordo entre beligerantes em razão de agressões mútuas, como falsamente se descreve a anistia de 1979, em franco negacionismo histórico”.

O segundo aspecto colocado foi que a a anistia, “na plena abrangência do termo, constitui uma política pública de responsabilidade do Estado nacional e reparação integral das ações produzidas por tais atos de exceção”, levando em conta sua dimensão moral, econômica, política e simbólica, como “instrumento da construção da memória e da garantia de não repetição desses atos”.

O terceiro ponto é que a anistia deve ser vista como uma política pública de justiça de transição, “assim como as demais políticas de busca pela verdade, direito à memória histórica, justiça, reconhecimento de responsabilização e reformas institucionais, sobretudo das forças de defesa, segurança e do poder judiciário”.

Lentz salientou que a anistia, como encarada a partir de 1988, “é um instrumento de reconstrução democrática e reconhecimento do sofrimento político como violência de Estado e jamais — e repito, jamais — poderá ser confundida com impunidade a conspirações autoritárias contra o regime democrático. São essas as balizas legais e doutrinárias que fundamentam este voto”.

Perseguição sistemática

Em seu voto, o relator Rodrigo Lentz fez ainda um detalhado e impactante relato desde os sofrimentos enfrentados pela jovem Dilma Rousseff até o processo que finalmente resultou em sua anistia.

Protocolado pela ex-presidenta em outubro de 2002, o requerimento lembra que “durante o período da ditadura, a requerente (Dilma Rousseff) dedicou-se à defesa da democracia, da igualdade, da educação e dos direitos sociais, por meio de intensa atividade política de oposição aos abusos cometidos pelo regime militar. Por tais motivos, foi perseguida, monitorada por 20 anos, expulsa do curso universitário, demitida, além de ter sido presa e severamente torturada”.

O cenário altamente repressor — iniciado com o golpe de 1964 — acabou obrigando a jovem militante estudantil a viver na clandestinidade. Em janeiro 1970, Dilma foi presa pela Oban (Operação Bandeirantes) em São Paulo, com pouco mais de 20 anos.

O documento salienta que a partir daí, foi “sistematicamente torturada por 22 dias, com técnicas de extrema violência e desrespeito aos direitos humanos, violações essas que foram denunciadas pela própria vítima à época”.

Dilma acabou sendo injustamente condenada a um total de mais de seis anos de prisão e teve seus direitos políticos cassados por 18 anos. “O total das penas foi depois diminuído pelo Tribunal Superior Militar para dois anos e um mês, mas foi mantida a cassação de seus direitos políticos. Ainda assim, Dilma foi libertada apenas no final de dezembro de 1972, ou seja, após três anos de encarceramento ilegal e de sujeição a torturas praticadas pelos agentes do regime militar”, destaca o requerimento.

O relatório lembra ainda que, como havia sido expulsa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com base em um ato de exceção do regime militar, Dilma, mais tarde, teve de prestar novo vestibular para a faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sendo obrigada a cursar novamente todas as disciplinas desde o início do curso. “Tais acontecimentos acarretaram um atraso total de dez anos, até completar sua formação como economista”, apontou Lentz.

Em 1975, Dilma começou a trabalhar na Fundação de Economia e Estatística (FEE-RS), mas continuou sendo perseguida por suas posições.“O ministro do Exército à época, Silvio Frota, divulgou uma lista do que chamou de ‘comunistas infiltrados no governo’, que foi amplamente noticiada nos jornais da época e incluía o nome da requerente, o que acarretou sua demissão da FEE”, diz o relatório.

O intenso monitoramento de sua vida prosseguiu até o final do ano de 1988, conforme apontavam dossiês secretos do Sistema Nacional de Informações (SNI).

Corrigindo ilegalidades

Após a redemocratização e a Constituição de 1988, Dilma teve a condição de anistiada política reconhecida por quatro comissões estaduais: do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Reparações financeiras advindas de alguns desses processos foram doadas pela ex-presidenta a entidades ligadas à defesa da democracia e dos direitos humanos.

Além disso, Dilma foi readmitida na FEE-RS em 1990, mas não reintegrada, de maneira que, com a assinatura de novo contrato de trabalho, a evolução profissional que ela teria alcançado no período em que ficou afastada contra a sua vontade foi desconsiderada.

Em 2002, foi aprovada a Lei 10.559, que criou o regime federal de reparação aos anistiados políticos. Com base nessa norma, em outubro do mesmo ano, Dilma apresentou requerimento de anistia federal junto ao Ministério da Justiça.

Um ano depois, em 2003, Dilma foi nomeada ministra de Minas e Energia; em 2005, tornou-se ministra-chefe da Casa Civil e de 2011 a 2016, presidenta da República. Durante esse período, optou por suspender a tramitação de seu processo.

Em 2019, já sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), a Comissão de Anistia foi transferido do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. “Apesar de todo o conjunto probatório dos autos, a antiga Comissão de Anistia indeferiu seu requerimento, com base na frágil alegação de que Dilma já havia sido anistiada por ato do governo do RS”, pontuou o relator.

Este pedido de reconsideração, acrescentou, “objetiva corrigir a ilegalidade do ato administrativo anterior, a fim de garantir seu direito à concessão de anistia política federal e reparação em prestação mensal equivalente ao salário que receberia em atividade na FEE”.

Lentz mencionou voto complementar emitido pela então conselheira Adriana Tinoco Vieira, para exemplificar a forma como o caso foi tratado no período Bolsonaro.

A conselheira usou como fundamento a Lei de Segurança Nacional, em vigor à época, e argumentou que não haveria nos autos “provas de que a requerente tenha sido atingida por ato de exceção do Estado, em decorrência de motivação exclusivamente política. Ao contrário: o que se evidencia é que a requerente teria optado pela prática de crimes previstos em instrumentos legais vigentes à época”.

Tal posicionamento foi adotado mesmo diante de rico material probatório em contrário, no qual, vale destacar dois trechos dentre muitos depoimentos impactantes dados por Dilma Rousseff.

Em um deles, ela afirmou: “Uma das coisas que me aconteceu naquela época (em que estava sob tortura) é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada dentária girou para o outro lado, me causando problemas no osso do suporte do dente até hoje. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Só mais tarde, quando voltei para SP, o ‘Albernaz’ (como era conhecido um dos seus torturadores) ‘completou o serviço’ com um soco, arrancando o dente”.

Por fim, vale resgatar outra fala de Dilma que contradiz o posicionamento adotado pela Comissão nos tempos de Bolsonaro: “em ambas as instituições — o DOI-Codi e o Dops —, fui barbaramente torturada, ou seja, com choques elétricos, pau-de-arara, palmatória, sendo duas vezes levada para o Hospital do Exército devido a hemorragias graves”.

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