Em Lagolândia, pequeno distrito de Pirenópolis, no interior de Goiás, nasceu em 1925 uma figura que transcenderia o tempo: Benedicta Cypriano Gomes, mais conhecida como Santa Dica. Em abril deste ano, o povoado celebrou os 120 anos de seu nascimento. Em meio a esse resgate histórico e simbólico, o Jornal Opção conversou com Lucília Amaral, presidente do Instituto Santa Dica, que lidera um movimento para preservar a memória de Dica, promover justiça ambiental e desenvolver um modelo de turismo comunitário e sustentável para o local.
Santa Dica não foi uma santa canonizada, mas sua influência foi tão profunda que o local onde vivia ficou conhecido como “República dos Anjos”. Diziam que ela recebia mensagens divinas, curava enfermos e mediava conflitos.
Inspirada pela trajetória da santa popular, Lucília decidiu transformar a admiração coletiva em uma estrutura organizada. “Cada um teve uma relação com Santa Dica. No meu caso, foi nos estudos para concurso, mas principalmente na época do governo municipal do Pedro Wilson, ele fez uma revistinha chamada Santa Dica, com toda a programação cultural, isso nos idos do ano 2000”, contou ela. Na juventude, frequentava os eventos do “Terça Tem Canja” promovidos pela Secretaria Municipal de Cultura e, desde então, passou a conhecer e se encantar com a história da mística de Lagolândia.
A iniciativa de criar o Instituto surgiu de um grupo comprometido com a atuação em diferentes áreas. “Foi de um determinado grupo, falamos ‘Vamos montar uma institução? Vamos trabalhar com essas especialidades? Vamos trabalhar com o nome Santa Dica?’ Eu, o Felipe Matos, analista de cultura e advogado, a Renata Ribeiro, tatuadora, e o Felipe César, recreador e professor de hip hop, todos continuam no Instituto Santa Dica”, relatou Lucília. A organização se consolidou com uma proposta multidisciplinar: são 55 membros, especialistas em áreas como direitos humanos, meio ambiente, patrimônio histórico e educação.
Durante a criação do Instituto, o grupo teve o apoio decisivo de Álvaro, um filósofo com visão ampliada sobre meio ambiente. “Ele trouxe o termo justiça ambiental, que trata desde a justiça climática ao saneamento básico, até a restauração ambiental”, explicou Lucília. Essa abordagem mais ampla foi fundamental para estruturar o Instituto Santa Dica não apenas como um guardião da memória de Benedicta, mas também como agente de transformação social e ecológica em Lagolândia.
Entre os principais projetos da organização está a criação de um memorial dedicado a Santa Dica no próprio espaço onde ela viveu e acolheu a comunidade. “Tem a Casa de Santa Dica e uma outra casa que foi devastada pela enchente e a gente tem que ver quem é o dono, o que vai fazer, se pode fazer esse memorial […] Tem também o salão de curas de Dica, um lugar onde os doentes ficavam deitados. E tem a cozinha de Dica. Além da cozinha, tem o fundo, que é a varanda, com os fornos onde são feitos os doces”, relatou Lucília. A ideia é transformar a antessala ampliada da casa em um memorial com livros, uma televisão e espaço de visitação, desde que com o aval dos familiares e da comunidade.
Com foco no protagonismo feminino, o projeto também prevê a formação de mulheres locais para atuar como guias do espaço. “Nosso foco também são as mulheres se responsabilizarem por receber essas pessoas na casa de Dica, mostrar esse memorial”, afirmou a presidente do Instituto. Para isso, cursos de capacitação estão em pauta, sempre com base no respeito à identidade local e na proteção do patrimônio.
Outro ponto da atuação do Instituto é a oficialização do Caminho de Santa Dica, percurso de importância histórica e simbólica. Lucília conta que cuidadosamente. Segundo ela, a deputada federal Adriana Accorsi (PT-GO) passou a integrar o esforço coletivo após um encontro casual durante a Expedição Meia Ponte.
“Ela não tinha esse contato direto com o Santa Dica, mas ali eu pude apresentar a proposta, fazer uma introdução. Desde então, temos mantido um diálogo próximo. Semana passada mesmo consegui falar com ela, e ela vai nos apoiar nesse processo. Vai agendar uma reunião com o IPHAN, e, assim que isso acontecer, vamos entrar com um ofício para o Fabrício Amaral, da Goiás Turismo, para oficializarmos de fato esse caminho”, afirmou.
Lucília destacou que o apoio de Adriana Accorsi tem sido fundamental, especialmente pela atuação da parlamentar na pauta ambiental. “Ela sempre está presente e tem sugestões e projetos de lei também dessa área ambiental então eu quero essa presença dela”, reforçou.
No entanto, o Instituto age com cautela. “Lagolândia é um lugar muito especial, paradisíaco, com 500 moradores, e a gente não quer o boom que existe em Pirenópolis”, alertou Lucília, relembrando os tempos em que a cidade vizinha era tranquila, antes de se transformar em um polo turístico massificado. “Agora está muito cheia, moradores de rua, criminalidade. A gente não quer que isso aconteça em Lagolândia.”
Desde a visita técnica realizada com o IPHAN em 2023, o Instituto Santa Dica tem evitado ações precipitadas que possam comprometer a integridade ambiental e cultural do território. A ideia, portanto, é investir em um modelo de turismo verdadeiramente ecológico, de base comunitária, que envolva diretamente os moradores. A intenção é formar guias locais e promover a valorização dos saberes da comunidade.
“Você vê uma festa do doce em que o povoado recebe 5 mil pessoas e fica lotado, mas tem desordem e falta de estrutura”, apontou Lucília, enfatizando a importância de um planejamento cuidadoso.
O cuidado com o perfil do público visitante também é algo que permeia toda a fala de Lucília. A estratégia, segundo ela, passa por uma comunicação seletiva e criteriosa. “Até mesmo as mídias, a gente tem que ser prudentes com quem que a gente vai atrair. […] Brasília, o Distrito Federal ali, já conhece esse caminho de Santa Dica, eles fazem um movimento de bike […]. São pessoas muito conscientes e eles divulgam entre si”, afirmou, fazendo um paralelo com o antigo funcionamento do Mosteiro Zen Budista Eisho Ji, que atraía visitantes apenas por meio de mapas manuais, justamente para garantir que o público fosse alinhado com os valores do local.
A oficialização do Caminho de Santa Dica, segundo Lucília, permitiria acessar recursos e mecanismos de divulgação já existentes no aparato governamental, mas sem perder o controle sobre a identidade do projeto. “A questão do caminho de Santa Dica, em relação aos apoios da Goiás Turismo, por exemplo, vai passar mais por essa questão da imprensa governamental mesmo. […] Só que a gente não quer, porque, por exemplo, o Caminho de Cora é um grande percurso e atrai gente de todo mundo. A gente não quer um grande percurso que atraia gente de todo mundo. A gente quer um percurso muito bem elaborado que atraia pessoas conscientes de todo mundo.”
O cuidado com o meio ambiente também está no centro das preocupações do Instituto. A região tem uma arquitetura colonial centenária, com destaque para a igreja e a antiga casa da prefeitura, de 1935. Além disso, o Rio do Peixe, que corta o povoado, sofre com a ausência de mata ciliar. “Isso tem que ser fiscalizado. Quando a gente passa pelo povoado e vai para a rodovia 479, que foi invadida pela enchente, o rio já está cerceando a estrada. Se alguém passar de forma imprudente, pode cair”, alertou a presidente.
A restauração ecológica do entorno, com sinalização adequada e reflorestamento das margens, é uma das demandas do Instituto junto à Agência Goiana de Infraestrutura.
Lucília também criticou a fragilidade da legislação ambiental brasileira, apontando que o país precisa rever urgentemente os percentuais de preservação legal. “A gente está passando da hora […] do desmatamento zero. Por quê? A gente está próximo ao ponto de não retorno, se já não chegou nele”, alertou. Para ela, uma virada só virá com mobilização nacional: “Eu acredito que toda a sociedade organizada, junto em todo o país, a gente consiga abalar um congresso ruralista na hora que eles veem que tem todo o país exigindo um desmatamento, não com 80%, por exemplo […] que seja o contrário, que seja 80% de preservação e 20% de desmatamento.”
A preservação ambiental, o respeito à história e o envolvimento da comunidade são os pilares de uma proposta que vai além da memória de uma mulher notável. O legado de Santa Dica, afinal, se atualiza por meio da ação coletiva e da valorização de seu território. “Encontrar uma proposta de cuidado como o Instituto de Santa Dica, para mim é completamente uma realização de um sonho”, concluiu Lucília.
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