Nova Política de EaD impõe freios à expansão descontrolada do ensino remoto

A assinatura do Decreto nº 12.456/2025 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nesta segunda-feira (19), representa um marco na regulação da educação a distância (EaD) no Brasil. Após anos de crescimento acelerado e questionamentos sobre a qualidade dos cursos remotos — em especial no setor privado — o Governo Federal apresentou um conjunto de regras que visa reordenar o sistema e garantir parâmetros mínimos de excelência, presença docente e infraestrutura.

Apesar do avanço institucional e do amplo diálogo conduzido pelo Ministério da Educação (MEC), entidades estudantis comemoraram avanços. “Esse decreto foi uma conquista fruto de muita pressão e debate”, disse a presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Manuela Mirella, em entrevista ao Portal Vermelho.

Manuella Mirella, presidenta da UNE

A UNE acompanhou de perto o debate sobre o assunto no Governo e aponta que a nova política é um passo necessário, mas insuficiente e considera que ainda há lacunas importantes. Manuela defende que a educação a distância “não pode ser uma fábrica de diplomas” e propõe novas medidas para evitar a mercantilização do ensino superior.

Segundo a avaliação de Madalena Guasco Peixoto, dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), a nova política de regulação da EaD no ensino superior representa “um avanço histórico”. Ela participou diretamente do processo de formulação da proposta e destacou que o decreto reflete, em cerca de 95%, as contribuições elaboradas por uma comissão consultiva reconstituída pelo MEC — a CCPARES, instância ampliada ligada à Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres).

A educadora Madalena Guasco Peixoto

“Foi um processo muito debatido. Estavam presentes representantes de entidades da educação, da rede privada e do setor empresarial. A comissão não foi feita só de especialistas nomeados, como poderia ter sido. Houve escuta”, afirmou Madalena ao Portal Vermelho.

Avanços no papel: semipresencialidade obrigatória e limites à EaD

O novo marco legal proíbe a oferta totalmente remota de qualquer curso superior, criando três modelos regulados: presencial, semipresencial e EaD com exigência de pelo menos 20% de atividades presenciais e/ou síncronas mediadas. A medida atinge diretamente o que especialistas vinham denunciando há anos: a proliferação de cursos exclusivamente on-line com baixa ou nenhuma exigência prática.

“Agora está claro o que é curso presencial: presença física do aluno e do professor, em tempo real, em sala de aula. O que antes era uma grande fraude”, diz Madalena. Também foi criada a modalidade semipresencial, com atividades síncronas e obrigatoriedade de presença física parcial — até 50% do curso no caso das licenciaturas.

Cinco cursos — Medicina, Direito, Enfermagem, Odontologia e Psicologia — ficam restritos exclusivamente à modalidade presencial, como já vinha sendo defendido por conselhos profissionais e educadores. As licenciaturas e demais graduações da área da saúde poderão ser ofertadas apenas nos modelos presencial ou semipresencial, exigindo no mínimo 40% de atividades físicas no último caso.

Para o ministro da Educação, Camilo Santana, a medida é essencial para “valorizar a formação integral dos estudantes” e impedir que a tecnologia seja usada como pretexto para a precarização do ensino. Segundo ele, a nova política busca equilibrar o acesso com a qualidade, respeitando o papel estratégico da EaD num país de dimensões continentais como o Brasil.

A professora Madalena destacou ainda a obrigatoriedade de polos físicos estruturados e próximos ao aluno, com atendimento pedagógico; o fim da figura do tutor como substituto do docente — todos os profissionais que atuam na EaD passam a ser reconhecidos como professores e devem estar registrados no e-MEC; as provas discursivas obrigatórias realizadas presencialmente nos polos; o número máximo de estudantes por professor — antes eram até 2.500, agora será em média 50, com algumas exceções chegando a 70; e o acompanhamento pedagógico efetivo ao longo do curso. “Agora o professor vai poder, de fato, ser professor”, afirma ela.

Reação ao caos instalado nos últimos anos

A dirigente sindical contextualiza o decreto como uma resposta ao “caos” provocado por medidas anteriores de desregulamentação, adotadas nos governos Temer e Bolsonaro. “Eles liberaram polos em igrejas, permitiram associações entre instituições para criar polos sem estrutura mínima, aumentaram para 40% a carga horária a distância em cursos presenciais”, aponta Madalena, que também é diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP.

Segundo Madalena, esse cenário gerou cursos com baixa qualidade, ausência de avaliação prática e evasão em massa. “O aluno percebe que não está aprendendo, não tem apoio. O índice de evasão no primeiro ano é enorme. As instituições ganham no primeiro ano e não se importam se o aluno se formará”, denuncia. “Hoje, o número de matrículas na EaD é maior do que na presencial.”

Críticas do movimento estudantil: “Educação não é mercadoria”

Apesar de reconhecer avanços no novo decreto, a presidenta da UNE, Manuela Mirella, avalia que o texto ainda permite brechas perigosas. “Nos últimos anos, vimos o crescimento acelerado da modalidade EaD — mais de 200% — sem nenhum compromisso com a qualidade no ensino. O ensino superior virou mero fabricador de diplomas”, critica.

Ela salienta que a educação a distância pode, sim, ser ferramenta para democratizar o acesso à universidade, “mas não a qualquer custo”. Para Manuela, a nova regulamentação é importante por definir parâmetros de qualidade, mas precisa ir além. “Ainda precisamos garantir, por exemplo, que todos os cursos da área da saúde sejam 100% presenciais. Não faz sentido permitir que áreas com tamanha responsabilidade social sejam ofertadas de modo semipresencial.”

Outro ponto destacado pela dirigente é a necessidade de criação de um Instituto Nacional de Avaliação e Fiscalização do Ensino Superior EaD, com estrutura robusta e autonomia técnica. “É preciso garantir que o que está no decreto seja cumprido na ponta. Hoje, muitos polos funcionam sem mínima condição de oferecer educação de qualidade”, alerta.

Para ela, a disputa em torno da EaD é também política e ideológica: “Seguiremos na luta contra a mercantilização da educação. A formação acadêmica deve servir ao povo brasileiro, ao desenvolvimento nacional, e não aos lucros de grandes grupos privados.”

Empresariado dividido e pressão futura

Madalena concorda que há pressão de setores empresariais para ampliar a flexibilização em outras áreas da saúde, como fisioterapia. “Mas o que foi definido já é um avanço. O que ficou de fora ainda é preocupação.”

A nova política teve apoio de parte do empresariado da educação, mas enfrentou resistência do chamado capital aberto, grupo que representa grandes conglomerados educacionais. “Eles apoiaram parcialmente porque sabiam que a situação estava insustentável. Mas dizem que as novas exigências vão encarecer os cursos”, explica.

Apesar disso, Madalena afirma que muitos empresários reconhecem a necessidade de evitar que a baixa qualidade afaste alunos. “Eles entenderam que estavam matando o próprio negócio.”

Decreto é frágil, mas necessário: “Se fosse ao Congresso, não passaria”

Um decreto tem a vulnerabilidade de poder ser revogado ou alterado por outras normas, além de substituído por uma legislação aprovada no Congresso. Desta forma, a preocupação das entidades é com sua implementação para fortalecer o padrão de qualidade na sociedade e impedir um retrocesso. A transição será gradual: instituições de ensino terão até dois anos para se adequar às novas normas. Estudantes já matriculados em cursos que deixarão de ser ofertados na modalidade EaD poderão concluí-los conforme o regime vigente à época da matrícula.

O decreto também deixa aberta a possibilidade de o MEC definir novos cursos que não poderão ser ofertados na modalidade a distância — o que pode alimentar novos embates com mantenedoras privadas. A Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), embora tenha elogiado o decreto em nota preliminar, já sinalizou que poderá judicializar trechos do texto se considerar que eles ferem a livre iniciativa.

Ao ser questionada se o decreto não é frágil por natureza, Madalena reconhece que sim, mas afirma que foi o único caminho possível diante da correlação de forças no Congresso. “Se fosse uma lei, não passaria. O Congresso é dominado pelo capital educacional. Mas o decreto anterior, que desregulamentou tudo, também foi um decreto. Então agora temos uma base para lutar.”

Ela acredita que a regulamentação poderá ganhar força social ao ser implementada. “A imprensa recebeu bem. Existe uma base social que entende que não se pode ter curso de qualquer jeito.”

Assim como defendeu Manuela, o maior desafio, segundo a dirigente da Contee, está à frente: a fiscalização e a implementação efetiva das novas regras. “Vamos lutar para tirar os polos de dentro de igrejas e supermercados. Vamos exigir que o MEC avalie a infraestrutura dos polos e que as condições de trabalho dos docentes sejam respeitadas.”

Para Madalena, a questão central é o interesse público. “A maior vítima da má formação é a sociedade brasileira. É a criança da escola pública que vai receber um professor que nunca fez estágio. É o paciente da UBS atendido por um enfermeiro sem formação prática. Isso é muito grave.”

Enquanto isso, o movimento estudantil e demais entidades da sociedade civil seguem mobilizados. “Esse decreto foi uma conquista fruto de muita pressão e debate. Mas a nossa luta continua. Educação não pode ser um produto de prateleira — ela precisa estar a serviço da soberania nacional e da justiça social”, conclui Manuela. “Esses dois anos de transição serão de luta intensa. Precisamos garantir que o decreto saia do papel”, completa Madalena.

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