
Reportagem especial do Núcleo de Dados da Rede Paraíba mostra os dois lados de um regime de trabalho que tem se tornado cada vez mais comum. Thalian Luiza é especialista em curvatura
Reprodução/TV Cabo Branco
Thalian Luiza começou a trabalhar como especialistas em curvatura em 2019. O contexto era de Reforma Trabalhista em vigor, com mudanças sendo implementadas no mercado de trabalho. “A gente tinha falas como ‘você quer trabalho ou você quer direito?’. Essa precarização de direitos estava sendo muito normalizada”, relata Thalian. Por anos esteve inserida no mercado de trabalho como pessoa jurídica, com o cadastro de Microempreendedor Individual (MEI), mas sem ter seu próprio negócio. Sem carteira assinada e, consequentemente, sem muitos benefícios, a rotina era desgastante. Hoje, segue como MEI, mas dona do seu próprio salão de beleza, especializado em curvatura. “Todo mundo tem contas a pagar, mas que ninguém saia daqui extremamente prejudicado ou sacrificado. A prioridade de ninguém deve ser o trabalho”, diz Thalian.
A reportagem especial do Núcleo de Dados da Rede Paraíba mostra os dois lados de um regime de trabalho que tem se tornado cada vez mais comum e como as pessoas têm buscado se inserir no mercado de trabalho.
No Brasil, desde 1937, existe a Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT. É ela que garante ao trabalhador o direito a férias, décimo terceiro, FGTS e INSS. Mas após a Reforma Trabalhista de 2017, novas formas de trabalho foram oficializadas e legalizadas.
A partir das mudanças das regras, há oito anos, as empresas ganharam a opção de contratar profissionais fora do regime celetista, o tradicional emprego com carteira assinada, abrangendo possibilidades para outras formas de contratação. Uma delas é a admissão enquanto pessoa jurídica: os chamados PJs.
Nessa modalidade, o profissional tem um CNPJ, como se fosse uma empresa que presta serviços para outras empresas. Esse CNPJ, muitas vezes, é criado a partir da inscrição do trabalhador como Microempreendedor Individual. No entanto, o MEI, muitas vezes, sequer tem seu próprio negócio e atua no mercado de trabalho como pessoa física.
A população economicamente ativa é aquela disponível para trabalhar, que está no mercado de trabalho ou à procura de um emprego. Na Paraíba, esse grupo soma mais de três milhões e meio de pessoas. Mas o número de trabalhadores com carteira assinada, até o ano passado, era 420 mil. Isso significa que muita gente está buscando outras alternativas para se manter economicamente ativo.
É possível identificar que a quantidade de pessoas ocupadas por carteira assinada era ainda menor nos anos anteriores à 2024. Em 2023, por exemplo, 365 mil estavam no regime CLT; 362 mil em 2022; 318 mil em 2021 e 305 mil em 2020.
O aumento anual é perceptível, mas tímido. Ao mesmo tempo, o número de pessoas cadastradas como Microempreendedoras Individuais cresceu 39% em cinco anos, na Paraíba, de acordo com dados da Receita Federal. Até o fim do ano passado, mais de 213 mil pessoas estavam cadastradas como MEI no estado, o que corresponde atualmente a cerca de 6% da população economicamente ativa da Paraíba. Parte dessas pessoas ainda não tem seu próprio negócio, mas usa o CNPJ para se inserir em empresas que optam pela contratação de pessoas jurídicas.
Para Thalian, no início da carreira como administradora, houve uma oportunidade de trabalho como pessoa jurídica. A rotina era exaustiva e, empreender, foi a forma que encontrou para sair de um cenário que ela enxergava como precário.
“Hoje a gente consegue aqui no espaço ter uma flexibilização maior de horários. A gente trabalha cinco dias na semana, mas porque a gente acolheu um modelo de trabalho que é horizontal e que é coletivo. Mas a gente sabe que não é a realidade de todos os MEIs”, reflete Thalian Luiza.
Atualmente, ela e mais outras três mulheres são proprietárias de um salão especializado em cabelos cacheados. No espaço montado por elas, o modelo de lucro e trabalho é coletivo. Cada uma possui um cadastro como microempreendedora e dividem as despesas.
Eudes Nascimento é um desses profissionais que aderiu a essa nova forma de trabalho, mas sem abrir mão do contrato celetista. Atualmente, ele equilibra a dupla jornada enquanto professor, no regime CLT, e psicólogo clínico, com o cadastro de MEI ativo, e encontra vantagens nesse percurso.
“Todas as duas eu diria que são funcionais. No regime CLT, você segue um regime da empresa a qual você presta serviço. Então, você teria, vamos dizer, algumas limitações. Por outro lado, algumas pessoas entendem que o risco é menor. Enquanto você é pessoa jurídica, você, de certa forma, gera o seu próprio negócio. Pode surgir um risco maior, agora isso, se não houver um planejamento, não é? Mas você não fica, vamos dizer, restrito a ampliar o seu negócio, a crescer na prestação do seu serviço”, detalha o psicólogo.
Eudes Nascimento é psicólogo clínico e professor
Reprodução/TV Cabo Branco
Esse formato de trabalho pode ser vantajoso para alguns, mas não tem funcionado para todos. Este ano, uma série de processos trabalhistas foram abertos no Supremo Tribunal Federal (STF). Trabalhadores de várias regiões do país tinham uma queixa em comum: empresas estariam obrigando trabalhadores a se tornarem PJs e só assim eles seriam contratados. Realidade que leva à discussão de uma prática estudada como pejotização.
‘Pejotização’ do trabalho
Com a Reforma Trabalhista aprovada em 2017, uma série de mudanças foram incorporadas nas rotinas do mercado de trabalho. A socióloga Evellyne Tamara avalia como essas regularizações impactam a realidade social do mercado.
“Desde a reforma trabalhista de 2017, a pejotização é legalizada. O trabalhador e a trabalhadora tem uma contratação com a empresa, é uma empresa fornecendo um serviço a outra empresa. Só que quando a gente vai olhar para a realidade, como é que tem acontecido? A empresa precisa da prestação de serviço do trabalhador e da trabalhadora e na hora de contratar coloca condições de trabalho que seriam de um vínculo empregatício de pessoa física para pessoa jurídica, que é o meio, microempreendedor individual.
Geralmente as pessoas entram dentro dessa categoria. Nessa relação, há uma pessoa que é empresa e que deveria ter autonomia, estabilidade, e está hierarquicamente no mesmo lugar que a empresa que está contratando, porque nós estamos falando de empresa para empresa. Na prática isso não acontece, juridicamente isso tem sido visto como uma fraude de trabalho”, explica a psicóloga.
Socióloga Evellyne Thamara fala sobre pejotização do trabalho
Reprodução/TV Cabo Branco
Uma realidade que se não for discutida e analisada abre espaço para relações de trabalho precarizadas.
“Essa precarização significa que as garantias que você tinha de Consolidações das Leis Trabalhistas começam a cair. Então, quando a gente conquista 8 horas por dia e um descanso semanal – e que a gente sabe que isso é terrível para saúde do trabalhador e da trabalhadora – você percebe que a gente vive uma precarização do trabalho, quando o trabalhador e a trabalhadora não tem direito a férias, décimo terceiro, descanso remunerado, licença-maternidade, licença-doença. Então, todas essas garantias são retiradas dentro desse processo do mundo do trabalho que a gente vem vivendo”, ressalta Evellyne Tamara.
Sebrae em João Pessoa
Divulgação/Sebrae-PB
Diferença entre MEI e PJ
Para exercer a atividade de microempreendedor, há direitos e deveres assegurados por lei, o que acaba diferenciando a prática de outros modelos autônomos de trabalho, garantindo mais segurança diante de uma emergência. A analista técnica do Sebrae, Germana Espínola, explica como o cadastro de MEI funciona na prática.
“O microempreendedor individual é aquela categoria de empresário. Da pequena empresa mesmo, que tem um faturamento de até R$ 81 mil por ano. Ou seja, mensalmente ele pode faturar até R$ 6.750. Ele pode ter até um um empregado, não pode ter vínculo com outra empresa, outra sociedade. E ele tem vários benefícios. Você começa a ter o CNPJ, onde você pode prestar serviços também a empresas formalizadas”, explica a analista técnica do Sebrae.
Ela explica que o microempreendedor passa, portanto, a ser pessoa jurídica, prestando serviços a outras empresas.
“Tem que ter muito cuidado com questões de vínculos empregatícios, para não descaracterizar o serviço que o MEI faz. Para ele evitar isso, é importante que eles tenham uma negociação com a empresa que ele vai prestar o serviço, faça uma formalização através de contrato, quais são os prazos, como é a forma de pagamento, quais são os horários que esse MEI vai prestar o seu serviço e assim fica bom para ambas as partes”, completa Germana Espínola.
A roda não gira sem o trabalhador, mas a luta persiste para que tudo continue a funcionar com dignidade e qualidade de vida para quem dedica os dias ao trabalho.
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