A inteligência, a bravura e a história

Por Jorge Henrique Cartaxo
Lenora Barbo
Especial para o Correio Braziliense

O senador e marquês de Paranaguá foi o primeiro a pegar a alça do caixão que chegava ao porto do Rio de Janeiro, vindo de Niterói, numa galeota imperial trazendo o corpo de José Bonifácio de Andrada, no início da noite de 9 de abril de 1838 (ele havia falecido no dia 6 e o seu corpo, embalsamado, seria trasladado três dias depois). Seguindo a reverência de Paranaguá, no mesmo gesto, integraram o cortejo os senadores Luiz José de Oliveira, João Evangelista de Faria e Antônio Francisco Holanda Cavalcanti.

Aguardavam ainda a galeota imperial — que já havia sido saudada pelos navios de guerra e mercantes com suas vergas cruzadas e suas bandeiras a meio pau — algumas centenas de populares e oficiais militares. Uma banda executava peças fúnebres. Em caixão aberto, o corpo de José Bonifácio revestido da insígnia de cavaleiro da Ordem de Cristo, que recebera de dom João VI, passou das mãos dos senadores para a dos representantes da Sociedade Imperial de Medicina. Entre alas da Guarda Nacional, o cortejo seguiu para a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, onde Bonifácio ficaria exposto até 25 de abril. Sua filha, Gabriela Andrada, o levaria em seguida para Santos, sepultando-o na capela da Igreja Nossa Senhora do Carmo.

Coche mortuário de honra, três descargas de artilharia e infantaria, piquete de Cavalaria, criados da casa imperial perfilados, oradores civis e militares. Então com 13 anos, já Imperador, Pedro II, de uma das janelas do Paço, contemplava aquela cena incomum e grandiosa. A seu modo, também se despedia do tutor, conselheiro maior do seu pai, artífice singular da independência, do Estado e da Nação brasileira que ele acabava de herdar.

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José Bonifácio nasceu em Santos, em junho de 1763, numa família rica e aristocrata. Em 1783, com 20 anos, segue para Coimbra, em Portugal, onde estuda matemática, filosofia e inicia seus conhecimentos jurídicos. Amante da pesquisa e sempre atento às grandes mudanças do seu tempo, José Bonifácio percebeu a importância da mineralogia para a revolução industrial em curso.

Em 1787, concluiu seu curso de filosofia natural e em 1788, o de leis. Em 1789, ingressa na Academia das Ciências já com o direito de exercer o magistério e a pesquisa científica. No ano seguinte, já reconhecido pela sua cultura empreendedora e erudição, foi premiado com uma excursão científica, por toda a Europa, quando deveria aprender os melhores conhecimentos de mineralogia, história natural e filosofia.

Foram 10 anos de estudos, pesquisas e convivência científica. Em Paris, onde teria tido encontros e diálogos com Lavoisier, Bonifácio estuda química e mineralogia na Escola Real de Minas. Entre 1790 e 1791, enquanto se torna membro da Sociedade de História Natural e sócio correspondente da Sociedade Filomática de Paris, é espectador dos primeiros passos da Revolução Francesa. Segue para a Saxônia, em Freiberga, onde conheceu e ficou amigo de Alexander von Humboldt (o extraordinário Barão de Humboldt, geógrafo, polímata, naturalista, explorador e defensor do romantismo prussiano). Viaja ainda para a Itália, Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Países Baixos, Hungria, Inglaterra e Escócia.

De volta a Portugal em 1800, intensifica suas pesquisas e vida acadêmica, agora como professor da cátedra de metalurgia, especialmente criada para ele, na Universidade de Coimbra. Convidado de forma frequente, Bonifácio passa a ocupar diversos e importantes cargos públicos em
Portugal. Quando o general Jean-Andoche Junot, do exército de Napoleão, ocupou Lisboa, em 1807, José Bonifácio foi um dos delegados de Coimbra destacado para dialogar com o invasor. Na terceira ocupação francesa, em 1810, agora tenente-coronel do exército da Corte, José Bonifácio liderou um batalhão para Peniche, na Estremadura, onde ficou até a retirada do inimigo.

Em 1819, com 56 anos, percebendo a penúria que se abatia sobre Portugal e anunciando sua disposição de conhecer e desbravar os sertões e a natureza do seu país, José Bonifácio volta para o Brasil. Já em Santos, onde seu irmão Martim Francisco era diretor de minas e matas da Capitania de
São Paulo, retoma as suas pesquisas mineralógicas. O destino tinha outros planos! Entre 23 de junho de 1821 e 12 de novembro de 1823, o renoma-
do cientista e servidor público exemplar do Império Português, José Bonifácio de Andrada, torna-se o mais destacado construtor e articulador da independência do Brasil. Sua primeira convocação foi para presidir as eleições dos representantes da Província de São Paulo para a elaboração da nova Constituição portuguesa, nos termos da Revolução do Porto que havia convocado dom João de volta à Lisboa.

Para essa delegação, José Bonifácio elabora o seu primeiro grande documento que iria constituir o desenho da Independência do Brasil. Em
“Lembranças e Apontamentos”, ele faz constar as prioridades que os representantes de São Paulo deveriam defender nas Cortes de Lisboa. Abolição dos escravos, integração indígena, criação de uma universidade, estabelecimento de um governo-geral Executivo, aumento do número de escolas e a transferência da capital para o interior do País, dentre outras.

As Cortes de Lisboa queriam restabelecer o modelo colonial vigentes anterior a 1808. Bonifácio percebeu o risco do esfacelamento do país, com
parte do Brasil se aliando a Lisboa e outra lutando pela independência e o modelo republicano. Sua alternativa seria manter a união com Portugal, dentro de um sistema de Reino Unido, com uma estrutura jurídica e legal para o Brasil seguida das necessárias adequações econômicas e administrativas, respeitados os devidos direitos políticos e civis para os brasileiros.

Lisboa exigia o retorno de dom Pedro para Portugal e cada província brasileira, de forma independente, subordinada à Corte portuguesa. Em 9
de janeiro de 1822, dom Pedro decide permanecer no Brasil. No dia 17 nomeia José Bonifácio, agora com 60 anos, seu ministro e secretário de Estados e dos Negócios do Reino. Em 3 de junho de 1822, diante das continuadas pressões de Portugal e a crescente tensão interna — sobretudo em São Paulo, Minas, Pernambuco, Bahia, Maranhão e Pará —
Bonifácio fez prevalecer a ideia da convocação de uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa.

A urgência da independência, ponderada e adiada por Bonifácio e até pelo próprio dom Pedro, se deu quando novas ordens de Lisboa pediram a prisão de José Bonifácio e retiraram os poderes de dom Pedro como príncipe regente. Retornando de Santos, em 7 de setembro de 1822,
ao ser informado das novas exigências da Corte, declarou a Independência.

Em maio de 1823, teve início os trabalhos da Assembleia Constituinte. Em setembro daquele mesmo ano, o novo texto constitucional, liberal e reconhecendo os poderes executivos do Imperador, foi apresentado aos parlamentares. Entretanto, em Portugal, dom João havia recuperado
seus poderes absolutistas esvaziando os poderes das Cortes. A repercussão no Brasil foi imediata.

Ainda não exatamente pacificado internamente, crescem as ameaças à liderança de José Bonifácio reaproximando dom Pedro dos militares, do
partido português, das forças contrarias às expectativas de civilizar os índios, abolir a escravidão, acabar com o tráfico de escravos, criar escolas e
universidades.

A Assembleia Constituinte acabou dissolvida, José Bonifácio preso em novembro de 1823 e levado para a Fortaleza da Laje. Em seguida, o exílio
de seis anos na França. Em 1829, ele volta ao Brasil. Em 1931, com a abdicação de dom Pedro I, José Bonifácio é nomeado tutor do futuro Pedro II. Em 1833, o velho Andrada é novamente destituído, agora da tutoria do jovem príncipe. Seu destino é a prisão domiciliar na Ilha de Paquetá. Sua importância histórica permanecerá, sua inserção
política não!

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