A Semana Nacional da Luta Antimanicomial, comemorada entre os dias 16 e 20 de maio, mobiliza em Goiás uma série de atividades em defesa dos direitos das pessoas com sofrimento mental. Em Goiânia, a programação inclui um ato público na Praça Cívica com o tema “Por uma sociedade que cuide da Saúde Mental em Liberdade”. A proposta é reafirmar a importância de práticas que garantam autonomia e dignidade às pessoas atendidas pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
Como parte das ações, o Ministério Público de Goiás (MPGO) promoveu na terça-feira, 13, um seminário com a abertura da exposição “Florescer em Liberdade: Arte e Resistência da Rede de Atenção Psicossocial de Goiás” , reunindo profissionais da saúde mental, usuários e usuários da rede, familiares, pesquisadores e representantes de órgãos públicos. O evento marcou também a celebração de conquistas e o fortalecimento de políticas públicas para o setor no estado.
A Luta Antimanicomial é um movimento social e político que tem como objetivo transformar o modelo de atenção à saúde mental no Brasil. Teve como marco histórico o ano de 1987, quando trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental se manifestaram contra práticas assistenciais então vigentes. O movimento culminou com a aprovação da Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), que rompeu com um histórico de internações e violações de direitos, preconizando o tratamento em liberdade e na comunidade.
A mesa de abertura, com o tema Nada Sobre Nós Sem Nós: A saúde mental que temos e a que queremos, contou com participação da coordenadora da Área da Saúde do MPGO, Marlene Nunes Freitas Bueno; da representante da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Aussum), Vanete Resende, e da representante do Fórum Goiano de Saúde Mental, Heloíza Massanaro.
Heloíza Massanaro, que se reconhece como ativista pelo movimento da liberdade, observou que, em visitas aos Caps em todo o Estado, identificou, por exemplo, da rede de Goiânia, uma situação assustadora. “Faltam estrutura física e equipamentos, pessoal e formação continuada”, afirmou. Segundo ela, o Plano Estadual de Saúde, recém-aprovado, é ainda muito tímido.
Também estiveram presentes o titular da Gerência de Saúde Mental em Goiânia, Roberto Vaz de Abreu, e a gerente de Saúde Mental da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES-GO), Nathália dos Santos Silva.
Roberto assumiu há gerência há cerca de 3 semanas, substituindo Kellen Cristina Fernandes. Ele já atuou Gerência de Atenção a Populações Específicas da Prefeitura de Goiânia e foi coordenador e já coordenou a Unidade de Acolhimento infanto juvenil de Goiânia.

“Nunca houve investimento”
Nathália dos Santos Silva destaca que a primeira questão é sobre trazer a temática da arte como promotora de cuidado para dentro do Ministério Público. Ela considera, dentro da Gerência de Saúde Mental, que o componente da RAPS voltado para Reabilitação Psicossocial nunca teve investimento real no Estado. “Nosso objetivo agora é induzir e incentivar, inclusive o ponto de vista da gestão financeira, iniciativas de arte, cultura e economia solidária dentro dos serviços”, pontua.
“Estamos conversando bastante sobre o papel do Estado em fomentar esses investimentos em todo o território goiano. É fundamental lembrar do interior”, afirma Nathalia. Em Goiás, há 97 residências terapêuticas em funcionamento e ela fala sobre os desafios que isso representa.
A Fiocruz está elaborando um edital que será lançado em breve, com apoio às práticas de reabilitação e protagonismo dos usuários. Os editais contemplarão a aquisição de instrumentos, atividades e até bolsas para usuários e trabalhadores envolvidos.

Outro ponto importante é a formação dos profissionais. O projeto Nós na Rede será apresentado em breve e deve mobilizar profissionais em todo o Estado para formação contínua.
“Nosso foco é desinstitucionalizar pessoas ainda em comunidades terapêuticas, presídios e também os moradores do Hospital Psiquiátrico de Anápolis. Eu disse e repito: enquanto estiver nessa gestão, não saio enquanto essas pessoas não saíram de lá”, manifesta a gerente de saúde mental.
Ela afirma que o município já recebeu o recurso para implementar residências terapêuticas. Além do mais, a pasta está desenvolvendo uma linha de cuidado voltada para pessoas em situação de uso de álcool e outras drogas — um tema muitas vezes negligenciado e que envolve muitas comunidades terapêuticas. Um grupo técnico será criado para discutir essa linha.
Sobre o monitoramento e financiamento dos serviços, está atrelado a dois indicadores principais: o matriciamento, ou seja, o trabalho conjunto com a atenção primária; e a interceptabilidade — “precisamos sair de dentro do CAPS. Desinstitucionalizar significa desospitalizar e reabilitar, mas também evitar novas institucionalizações, inclusive dentro dos próprios CAPS”, destaca Nathalia.
A gestão dos hospitais psiquiátricos pelo Estado — três atualmente — também tem contribuído para esse processo.
Em maio deste ano, foi publicada a Política Estadual de Saúde Mental e outras Drogas, sem a inclusão das comunidades terapêuticas. Foi uma construção coletiva, com muitos parceiros e forte atuação no controle social.
Nathalia quis reafirmar o desejo para o próximo ano: que possa comemorar a conclusão do PAR (Plano de Ação Regionalizado). Para implementar a política, é preciso três instrumentos fundamentais:
- A política estadual , que já temos com as diretrizes definidas;
- O PAR , que define o que cada município vai implantar, os compromissos reforçados, os recursos destinados, e que será pactuado com todos os municípios até agosto, com apoio do Ministério Público;
- Uma linha de cuidado que organiza os fluxos de atendimento desde a atenção primária até os CAPS e serviços especializados. precisamos de clareza, regulação e sistematização disso tudo.
O objetivo é deixar esse legado construído, registrado em resoluções e portarias, para que continue independente de quem estiver à frente da gestão.
Fragilidade da Rede de Atenção Psicossocial
De acordo com a coordenadora da Área da Saúde do Centro de Apoio Operacional do MPGO, promotora de Justiça Marlene Nunes Freitas Bueno, o evento foi uma oportunidade para reflexão sobre os avanços da reforma psiquiátrica brasileira e os desafios atuais.A promotora de Justiça destacou ainda que o MPGO mantém o projeto Saúde Mental em Dia, cujo objetivo é contribuir para a melhoria da Rede de Atenção Psicossocial, com atividades tanto na capital quanto no interior do Estado. “As promotoras e promotores estão trabalhando para que os municípios organizem sua rede de atenção psicossocial”, ressaltou.
O também promotor Mário Henrique Cardoso Caixeta, do Grupo de Atuação Especial da Saúde, presente ao evento, falou da fragilidade da rede, principalmente nas Regiões Norte e Nordeste, afirmando ser essencial garantir a dignidade da pessoa humana.
Já o promotor Heráclito D’Abadia Camargo, da 82ª Promotoria de Justiça de Goiânia, com atribuição na área da Saúde, reforçou o compromisso institucional com a restrição da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e a ampliação do acesso à saúde mental em Goiás.
Segundo ele, o Ministério Público tem atuado na escuta e no levantamento das realidades de diferentes unidades da rede. “Estamos realmente desenvolvendo esse trabalho, e a ideia é fortalecer o Raps. Estivemos realizando visitas a várias unidades e esse trabalho não vai retroceder. Estamos certos a seguir com ele adiante”, afirmou.
O promotor citou dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que estima que uma em cada oito pessoas no mundo tem algum tipo de transtorno mental, incluindo casos leves, como ansiedade, até quadros mais graves. “Transportando isso para Goiânia, estamos falando de aproximadamente 200 mil pessoas. E, quando visitamos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), vemos que eles não têm estrutura para atender nem 10% dessa demanda. Investir muito na estrutura física e na equipe de profissionais”, enfatizou.
A representante da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Aussum), Vanete Resende, abre a fala dizendo que é preciso entender a loucura como uma condição de ser que também é produtiva. E mais: ela não é para qualquer um.
Ela parafraseia Marcos Vinícius e diz que “a loucura é para quem pode, não para quem quer”.
“Precisamos aprender com ela o poder da criatividade, da desconstrução das formas matemáticas que, muitas vezes, nos oprimem”, diz Vanete.
Como parte da mobilização deste mês de luta antimanicomial, a Aussum fez visitas a diversos serviços, junto com estudantes de psicologia. “O que se encontra na rede em Goiânia foi assustador. Vimos tetos caídos, escadas sem corrimão, piscinas tomadas pelo lodo, serviços sem móveis — e os que restam estão quebrados, enferrujados, com pernas caídas. Colchões rasgados, janelas quebradas, cortinas inexistentes. A precariedade é extrema”, completa a representante da Associação.

A escassez de profissionais, o envelhecimento da força de trabalho e a ausência de investimentos em formação continuada estão entre os principais problemas enfrentados por quem atua no Sistema Único de Saúde (SUS). Os servidores denunciam a precarização da política pública e cobram a realização de concursos, a convocação de aprovados e a valorização dos trabalhadores da saúde.
De acordo com especialistas, o cenário atual é de esgotamento. “A maioria dos profissionais está envelhecendo. São servidores cansados, muitos próximos da aposentadoria, que trabalham com sobrecarga e desmotivação. E o mais grave: não há renovação. Mesmo com concursos abertos, os aprovados não são chamados. Não entendo por quê”, afirma Vanete, profissional de saúde com mais de 20 anos de atuação no SUS.
“O trabalhador do SUS precisa ser valorizado — e concursado. Isso precisa ser bandeira de todos nós”, finaliza Vanete. Segundo ela, é preciso transformar todos os CAPS em CAPS III. Para ela, é inadmissível investir em comunidades terapêuticas e não há comunidade terapêutica “boa”.
“O conceito, por si só, já é equivocado”.
O Conselho Estadual de Saúde aprovou o novo Plano Estadual de Saúde Mental, confirmando que o documento não contempla totalmente os princípios da luta antimanicomial nem abrange todas as demandas regionais. Apesar das limitações, os conselheiros consideraram a discussão ampla e transparente. “É um plano tímido, sim. Mas é um começo”, afirmou uma conselheira. A expectativa é de que a próxima versão avance em ações mais ousadas, com fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial e maior atenção à diversidade dos municípios.
Durante a reunião, foi destacado o esforço da equipe técnica e a importância de garantir que o plano seja efetivamente implementado, com foco no cuidado em liberdade.
Arte como tratamento
O evento do dia 13 contou com apresentações culturais de usuárias e usuários da Raps, mesas de debate e relatos de experiências de projetos desenvolvidos em Goiás. Além disso, foi aberta a exposição artística Florescer em Liberdade, com obras produzidas por pessoas que frequentam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado.
Com o objetivo de integrar indivíduos em espaços da cidade e sociedade, o Caps Novo Mundo realiza a experiência Sexta Cultural: ocupando a cidade, oportunizando espaços de cultura e lazer a pessoas com sofrimento mental em Goiânia. Isabel Clímaco, psicóloga da instituição, explicou que o grupo é aberto aos usuários, seus amigos e familiares, e que frequentam espaços e atividades muitas vezes inusitados para eles, tais como cinema, piqueniques, oficina de colagem, exposições etc.
Alex Pereira Neto, usuário do Caps, contou o que sente ao fazer essas ações: “Serve para alegrar nossa tristeza e eu sempre chamo meus amigos”. Mais um relato de Experiência foi a do Bloco de Percussão Desencuca, trazido pela psicóloga do Coletivo Desencuca, Luanna Reis, que exibiu um vídeo sobre a criação do bloco. Luzineide Ferreira, usuária da Raps, contou sobre sua participação.
Programação da Luta Antimanicomial em Goiás – Maio/2025:
• 30/04 – 08h: Plenária do Conselho Municipal de Saúde (Conselho Municipal – Goiânia)
• 30/04 – 17h: Roda de Conversa: Luta Antimanicomial (Faculdade de Educação/UFG – Goiânia)
• 09/05 – 14h: Ensaio do Bloco Desencuca (Museu Antropológico – Goiânia)
• 09/05 – 09h: Aula Pública: Processo de Trabalho no CAPS (IPTSP/UFG – Goiânia)
• 10/05 – 08h: Oficina de Dança e Ginástica e Oficina de Cartazes (ESEFFEGO – Goiânia)
• 12/05 – 08h: Lançamento do livro “Deusdet e Camaradas” (Assembleia Legislativa – Goiânia)
• 13/05 – 13h30: Seminário e abertura da Exposição Florescer em Liberdade e (Ministério Público – Goiânia)
• 14/05 – 18h30: Aula Pública: Tecendo os fios da memória da saúde mental em Goiás (Teatro Asklépios – Medicina/UFG – Goiânia)
• 15/05 – 15h30: Oficina de produção de cartazes para o 18 de Maio (Faculdade de Educação/UFG – Goiânia)
• 15 e 16/05: I Colóquio de História da Loucura e Saúde Mental (Jataí – GO)
• 16/05 – 08h: Ato Político Estadual da Luta Antimanicomial (Praça Cívica até a Praça Universitária – Goiânia)
• 16 a 18/05: Congresso Goiano de Psicologia: Linhas de Liberdade (Anápolis – GO)
• 27/05 – 08h30: Audiência Pública: Política Estadual de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Assembleia Legislativa – Goiânia)
• 30/05 – 14h: Cineclube e Roda de Conversa: Filme Meu nome é Rádio (Museu Antropológico – Goiânia)
Leia também: Crise na saúde mental leva mais de 11 mil goianos a se afastarem do trabalho no último ano
Goiás repassou mais de R$ 6,5 milhões para comunidades terapêuticas
Tratamento de saúde mental em Goiás trava em meio a debate ideológico
O post Semana da Luta Antimanicomial em Goiás pede fim da internação e das comunidades terapêuticas apareceu primeiro em Jornal Opção.