Quase 100 mil crianças e adolescentes foram mortos no Brasil em 11 anos

A situação de violência que envolve crianças, adolescentes e jovens continua dramática no Brasil. Entre os anos de 2013 e 2023, 2.124 crianças de 0 a 4 anos, 6.480 entre 5 e 14 anos e 90.399 adolescentes entre 15 e 19 anos foram mortos no país, um cenário estarrecedor que demonstra que o Estado e a sociedade brasileira seguem falhando com seus cidadãos mais jovens e com o seu próprio futuro. 

Os dados fazem parte da edição 2025 do Atlas da Violência, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado nesta semana.

Embora a publicação tenha mostrado uma redução no número de homicídios gerais no país nesse período de 11 anos, no caso das faixas mais jovens, o cenário não melhorou. 

“Eu diria que o maior problema que estamos tendo é a violência contra as nossas crianças e adolescentes, que estão sendo verdadeiramente massacradas, não apenas na escola, mas sobretudo dentro de casa”, explica Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas. 

Ele completa dizendo que “quando olhamos o nível de violência que acontece dentro de casa — a um ponto em que as crianças precisem buscar ajuda nos hospitais públicos —, esse número cresceu muito nos últimos anos. Estamos falando de violências físicas contra crianças e adolescentes, violências psicológicas, sexuais, estupro de crianças, muitas vezes cometidas pelos próprios familiares mais próximos”. 

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No caso dos homicídios na primeira infância (0 a 4 anos), a taxa nacional foi de 1,2 por 100 mil, indicando que, em 2023, houve aumento em relação ao período anterior. No entanto, a variação em dez e cinco anos foi de -29,4% e -14,3% respectivamente. 

Quando analisada a faixa dos 5 aos 14 anos, os dados de 2023 indicam estabilidade na variação interanual no agregado nacional. Já na comparação com 2013, a taxa de homicídios de crianças apresentou redução de 53,8%.

As vítimas mais frequentes desse tipo de crime são os adolescentes entre 15 aos 19 anos, mas com queda de 7,6% no último ano. 

De acordo com o Atlas, “em todas as faixas etárias, a arma de fogo aparece como instrumento conhecido de maior frequência nos homicídios. Com efeito, 83,9% dos adolescentes (15 a 19 anos) e 70,1% das crianças (5 a 14 anos) foram vitimizados com o uso da arma de fogo. Em relação às vítimas infantes (0 a 4 anos), instrumentos desconhecidos aparecem com maior frequência, sinalizando inadequado preenchimento da informação instrumento na declaração de óbito”. 

Violência não letal

O cenário de brutalidade envolvendo as faixas mais jovens da população também está caracterizado nas violências física, sexual e psicológica, demonstrando que a construção de um país mais digno, pacífico e igualitário passa, especialmente, pela garantia de direitos a esse público tão vulnerável. 

No caso da faixa entre 0 e 4 anos e entre 5 e 14 anos, a residência aparece como local majoritário das ocorrências, com 67,8% e 65,9% das notificações, respectivamente. 

A violência doméstica correspondeu a 79,5% das ocorrências envolvendo infantes (0 a 4 anos), a 55,6% no caso de crianças (5 a 14 anos) e a 44,9% em relação aos adolescentes (15 a 19 anos). 

A violência extrafamiliar é menor nas faixas mais jovens e maior nas de maior idade, numa relação oposta à de tipo doméstica. Aqui, para as mesmas idades, os percentuais são de, respectivamente, 7,85%, 26,6% e 40,7%. 

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Segundo o Atlas, os infantes são as principais vítimas de negligência (61,4%), as crianças são a maioria das vítimas de violência psicológica (54,8%) e sexual (65,2%) e adolescentes são as principais vítimas de violência física (58,2%).

Além disso, segundo a publicação, “entre 2013 e 2023, dentre as violências analisadas, as mulheres são 65,1% das vítimas e, portanto, constituem as principais vitimizadas em violência física (60,1%), psicológica (72,1%) e sexual (86,3%). Crianças e adolescentes do sexo masculino são as principais vítimas de negligência totalizando 52,3%”. 

Os atendimentos relativos à violência física, sexual, psicológica e à negligência, que caíram em 2020 durante o isolamento resultante da pandemia, voltaram a crescer nos anos seguintes. Em 2022, foram 84,7 mil registros; em 2023, foram 115,3 mil. 

“Constatamos um cenário perturbador em que nossas crianças e adolescentes estão senso massacradas exatamente nos ambientes em que elas deveriam estar sendo protegidas, nos lares e na escola”, diz o levantamento.

Adolescência

De acordo com o Atlas, o aumento da violência sofrida por adolescentes também é alarmante. Conforme dados colhidos junto à Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), produzida pelo IBGE em 2009 e 2019, a publicação reporta que 40,5% dos estudantes do nono ano do ensino fundamental relataram ter sofrido bullying; 30%, algum tipo de agressão e 16% dizem ter sido agredidos por algum familiar. 

Além disso, 62,5% desses adolescentes disseram que se sentiram tristes em algum momento dos 30 dias anteriores à entrevista e que ninguém se preocupava com eles; 11,4% desses alunos não foram à escola por se sentirem inseguros. 

Comparando as edições de 2009 e de 2019, os indicadores sobre bullying, sobre agressão por familiares e sobre não ir à escola por medo aumentaram no período 31%, 111% e 69,4%, respectivamente.

“Ainda que possamos conjecturar que possa ter havido alguma mudança na conscientização dos estudantes entre 2009 e 2019, de modo que parcela do aumento da violência autorreportada tenha sido devido à essa mudança de compreensão e não efetivamente ao aumento da violência sofrida, certamente essa hipótese não daria conta de explicar a magnitude do crescimento”, pondera o Atlas.

Da mesma forma, prossegue, “ainda que a o número de estabelecimentos de saúde que passaram a notificar as violências no Sinan (Sistema Nacional de Informação de Agravos de Notificação) tenha aumentado, esse movimento não seria capaz de explicar o crescimento substancial das notificações”.

O Atlas avalia a necessidade de haver pesquisas mais aprofundadas para compreender mais a fundo as razões para esses números, de maneira que o poder público e a sociedade possam responder de maneira mais eficiente. 

Mas, aponta que “é razoável conjecturar que o aumento dessas violências esteja associado ao recrudescimento do radicalismo político e de ideologias da extrema direita, por meio da ampliação de discursos de ódio, intolerância e polarização. A xenofobia e a misoginia são duas faces desse fenômeno, em que as frustrações em relação ao desemprego e às incertezas e angústias da adolescência são direcionadas contra estrangeiros ou contra mulheres e meninas”. 

No ambiente de incertezas que mistura esse cenário com as características próprias da adolescência, diz o estudo, forma-se um terreno fértil para as soluções fáceis apresentadas pela extrema direita, “para quem a origem do problema assenta-se na ‘degeneração’ de valores ocasionada pela cultura woke e pela defesa de grupos sociais minoritários”. 

Segundo essa perspectiva, acrescenta, a solução “passa pela promoção da superioridade masculina e a desvalorização das mulheres. A machoesfera, uma rede de comunidades on line onde se propagam essas ideologias misóginas e a cultura da masculinidade tóxica, tem contribuído para a normalização de comportamentos violentos contra as mulheres e meninas, sobretudo no ambiente escolar”. 

Suicídio

Consequência extrema das dores e incompreensões dessa idade, o número de suicídios de crianças e adolescentes também é preocupante. 

Para Daniel Cerqueira, “essa violência termina irradiando da casa para as escolas e aí temos a questão do bullying, do cyber bullying e é uma questão tão grande que, nos últimos 11 anos, o número de suicídios de crianças entre 10 e 19 anos aumentou 42,7%. Estamos falando que nesse período, cerca de 11 mil crianças se suicidaram e isso é uma lástima à qual precisamos voltar os nossos olhos se quisermos pensar o futuro dessa nação”. 

Neste sentido, o Atlas defende a implementação de políticas públicas “que adentrem nos domicílios para orientar as famílias, além de promover intervenções educacionais, com ampliação dos espaços de diálogo. É fundamental ainda reforçar políticas de igualdade e respeito para garantir a saúde física e mental de nossas crianças”. 

Juventude na mira

No segmento entre os 15 e os 29 anos, a morte violenta é a principal causa da perda de vidas, mais um indicador da gravidade do ambiente que envolve essa faixa fundamental para o desenvolvimento do país. 

 “Em 2023, 34% das mortes de jovens no país foram consequência de homicídios. Do total de 45.747 homicídios registrados no Brasil em 2023, 47,8% vitimaram jovens entre 15 e 29 anos. 21.856 jovens tiveram suas vidas ceifadas prematuramente, o que corresponde a uma média de 60 jovens assassinados por dia no país. Considerando a série histórica dos últimos onze anos (2013-2023), foram 312.713 jovens vítimas da violência letal no Brasil”, mostra o Atlas. 

Por outro lado, o estudo aponta que pior ano, 2017, morreram 72,4 jovens por 100 mil indivíduos desse grupo etário, ao passo que esse indicador em 2023 foi de 47. A variação no último ano foi de redução de 6,2%. Os homens continuam sendo as principais vítimas: 94% dos assassinados entre 2013 e 2023. 

A publicação salienta que “a criminalidade violenta produz diversas externalidades negativas, entre as quais se destacam o menor crescimento econômico, a redução no desenvolvimento educacional de crianças e adolescentes e a diminuição da participação no mercado de trabalho. No contexto dos jovens, a morte prematura significa privá-los da oportunidade de experimentar outras fases da vida”. 

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