Como o Brasil deve lutar contra as Big Techs?

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Na semana passada, mediei um debate sobre a concentração de poder nas Big Techs durante o Congresso do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), o maior encontro da filantropia nacional. A mesa foi proposta pela Agência Pública em parceria com a Luminate, fundação que é uma de nossas financiadoras, cujo foco é justamente enfrentar a concentração do poder na área de tecnologia.

Aprendi um monte. A conversa acabou indo por caminhos que eu não esperava, graças ao grupo eclético que reunimos, que ia desde um representante do Alafia Lab, think tank que defende a regulação das plataformas, até o Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec).

Veio deste lado, do Luan Cruz, coordenador de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, o detalhamento de como a revolução tecnológica trouxe consigo uma avalanche de problemas para todos nós. “Se você fala, por exemplo, de publicidade digital, o que a gente mais sofre hoje em dia é com os golpes e anúncios em redes sociais que depois desembocam nos problemas de outras tecnologias como o Pix”. Meus dois centavos: golpes esses que muitas vezes são impulsionados pelas grandes plataformas como Google e Facebook, que seguem promovendo anúncios enganosos e não se responsabilizam pelo conteúdo. Elas também estiveram de mãos dadas com outros problemas sociais avassaladores, como a epidemia de apostas, afinal muitas das “bets” ganharam espaço por aqui também anunciando em redes sociais antes de haver uma mínima regulação pelo Ministério da Fazenda.

Luan lembrou ainda que os malefícios da inteligência artificial – que costumam ser debatidos como algo que vai acontecer no futuro – já são onipresentes, hoje, no Brasil. Na área de mobilidade, por exemplo: “No metrô ou nos ônibus, em todo lugar tem câmera de reconhecimento facial. Quando ela acerta é muito ruim, porque ela sabe onde todo mundo está indo, e quando erra também é ruim porque erra para alguns corpos específicos”. Corpos pretos e pardos, como sabemos, são mais vítimas do racismo algorítmico porque os vieses da sociedade se imiscuem nos robôs e, ali, ganham status de verdade. (A esse respeito, aliás, recomendo um levantamento que conheci durante o painel, a linha do tempo da discriminação algorítmica, elaborada pelo pesquisador Tarcizio Silva, da UFABC).

Nina da Hora, uma das referências em ativismo e pensamento sobre o tema das tecnologias, fellow da Fundação Ford e criadora do Instituto da Hora, trouxe uma questão mais de fundo da adoção rápida e sem reflexão das tecnologias pelo público brasileiro: a naturalização do extrativismo digital. “Se normalizou você olhar para desenvolvimento de inteligência artificial e desenvolvimento de qualquer outra tecnologia de uma perspectiva de que você precisa sempre extrativizar os dados e aproveitar das pessoas”, disse. “Estão olhando todo mundo aqui como número ou como 01, ou como XYZ, ou como um dado. Não estão olhando ninguém dentro da proximidade e respeitando os contextos das pessoas”.

E é o contexto das pessoas o que acaba importando, mesmo no mundo dominado pelos algoritmos. Há elementos econômicos, mas também culturais, diz ela, que levam os brasileiros a serem ávidos consumidores de todas as novas tecnologias, como os chatbots ChatGPT e o DeepSeek. Isso, aliado às mazelas já conhecidas do nosso país desigual e violento, faz com que sejam sentidos aqui os danos das tecnologias de maneira avassaladora. Mas faz com que, também, o Brasil seja, na arena global, mais que um laboratório de testes de novas tecnologias – nós também somos coautores das maiores tecnologias usadas mundo afora. Foi graças a países como o Brasil e a Índia, cujas populações adotaram rapidamente o ChatGPT, que a tradução para os idiomas português e hindi deram um salto acelerado em relação a outras línguas.

Como o avanço algorítmico se faz no encontro entre ser humano e máquina, nossa presença massiva na internet plataformizada faz enorme diferença. Lembremos das muitas vezes em que Mark Zuckerberg disse que “os brasileiros estragaram o Facebook”, e de toda a atenção fixada por Elon Musk para a atuação do “X” no Brasil – e, ainda, como ele teve que enfiar o rabinho entre as pernas, pagar a multa ao STF e seguir as decisões da corte.

Isso, lembrou Nina, é porque somos mais que números, somos co-criadores das tecnologias mais importantes, através dos nossos dados, sim, mas também da nossa ação, da nossa linguagem, da nossa criatividade que se derrama na rede.

“O Brasil já era grande usuário de mIRC, depois de ICQ, MSN, Orkut, e chegamos às redes sociais que a gente conhece hoje. E o Brasil é sempre um grande mercado consumidor, mas também, por outro lado, é um mercado produtor de conhecimento a respeito desses assuntos também”, completou Rodrigo Carreiro, co-diretor executivo do Alafia Lab. Rodrigo lembrou nossa liderança no mercado de software livre, que chegou a ser impulsionado pelo primeiro governo Lula, mas depois foi abandonado como política pública. Mas, para ele, o Brasil também é inovador no pensamento legislativo sobre o tema. “O Brasil está na ponta de lança, esteve na ponta de lança em algumas legislações digitais, como a Lei Carolina Dieckmann, que é uma lei inédita em muitos países, que nem existe esse tipo de lei. O Marco Civil da Internet, com forte apoio e atuação da sociedade civil”.

“Então a gente tem a capacidade, mas é uma escolha de um país também, é uma escolha de ser soberano nas áreas e não só receber aquilo que chega de fora para consumir e não ser apenas um mercado consumidor”, completou.

É também nessa chave de inovação que se dá a “fuga de cérebros”, a grande quantidade de desenvolvedores brasileiros que terminam trabalhando para essas megacorporações, a salários baratos para elas, mas impossíveis de se pagar aqui no Brasil. O efeito político deste esvaziamento do trabalho dos tecnólogos em um país que precisa tanto de um debate qualificado sobre quais tecnologias queremos é a ausência de input daqueles que conhecem a linguagem.

Existem, sim, grupos que produzem código com “intencionalidade”, para usar um termo da Nina da Hora, e que têm produzido tanto conhecimento como soluções tecnológicas à brasileira. Alguns deles foram sugeridos pela pensadora depois do Congresso, e acho por bem compartilhar com vocês para que conheçam melhor e os apoiem, como o grupo Afropython, de Salvador, cuja missão é aumentar a representatividade de pessoas negras na área de tecnologia; o Instituto Aaron Swartz, em Belo Horizonte; e o Pajubá Tech, de Recife, que promove a inserção de pessoas trans na tecnologia. Também há grupos que seguem levando adiante um sonho de uma internet aberta, democrática e política, que atua pelo bem comum e não pela riqueza das plataformas. Um destes fóruns de encontro de tecnólogos, desenvolvedores e pesquisadores vai acontecer neste fim de semana em São Paulo, a Cryptorave, um evento que dura 24 horas na Biblioteca Mário de Andrade e traz uma explosão criativa de gente que está pensando e construindo alternativas ao modelo da internet hiperconcentrada e hipercapitalista. Participo na sexta, às 22h, de uma apresentação sobre como jornalistas e desenvolvedores podem enfrentar o poder das Big Techs. Toda a programação vale demais. É mais um espaço que constrói resistência pelo encontro presencial – porque o desafio é grande e só juntos conseguiremos encará-lo.

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