Morre Nana Caymmi, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, aos 84 anos

Do jornal O Globo

Morreu hoje, aos 84 anos, a cantora Nana Caymmi, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira. A informação foi confirmada por uma fonte próxima.

Nana havia passado seu aniversário de 84 anos, na última terça-feira (29), em estado delicado de saúde. A cantora, que está internada há nove meses, sofreu uma “overdose de opioides”, conforme informou ao GLOBO seu irmão, o músico Danilo Caymmi. A causa da morte ainda não foi informada.

Nana deu entrada na Clínica São José, em Botafogo, Zona Sul do Rio, em agosto do ano passado, diante de um quadro de arritmia cardíaca. Ela passou por cateterismo e traqueostomia. Na última terça, Nana passou por reposição de glicose e teve medicação ajustada pelos médicos.

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Em 1973, aos 32, em entrevista ao GLOBO, ela já se definia com uma franqueza que seria mantida por toda a sua carreira:

“Nana Caymmi é uma senhora neurótica. Venho de uma família de dois compositores e dois intérpretes que muito me orgulham, onde a música é mais nossa vida que nosso ganha-pão”

Nascida Dinahir Tostes Caymmi, em 29 de abril de 1941, no Rio de Janeiro, Nana foi a primogênita do casal formado pelo cantor e compositor baiano Dorival Caymmi e pela cantora Stella Maris. Quando ela nasceu, o pai já era conhecido no rádio, por gravações como a que Carmen Miranda fizera de “O que é que a baiana tem?”. Na escadinha, foi seguida por Dori em 1943 e Danilo em 1948 — todos os irmãos acabariam virando músicos também.

Estreia em disco

Em 1960, ainda na adolescência, Nana Caymmi gravou pela primeira vez como cantora, em disco do pai, na faixa “Acalanto”, que ele compôs em sua homenagem, quando ela ainda era criança. Os versos se tornaram conhecidos por quase todas as crianças do Brasil: “Boi, boi, boi / boi da cara preta / pega essa menina que tem medo de careta”.

— Meu pai estava em São Paulo para gravar um LP e minha mãe ia gravar “Acalanto”, mas na hora ela tremeu, ficou com medo — contou Nana, na entrevista de 1973.

“Aí meu pai me pegou pelo braço e me levou ao estúdio. A confiança que ele teve em mim nesse dia foi fundamental para a minha carreira, eu nunca havia pensado em ser cantora profissional. Mas tudo correu bem.”

Ainda em 1960, Nana lançou seu primeiro compacto solo, um 78 rpm, contendo as músicas “Adeus” (Dorival Caymmi) e “Nossos beijos” (Hianto de Almeida e Macedo Norte). No dia 26 de abril, assinou contrato com a TV Tupi, apresentando-se no programa “Sucessos Musicais”. Em seguida, passou a apresentar, acompanhada por Dori, o programa “A Canção de Nana”, produzido por Eduardo Sidney.

Casamento e vida na Venezuela

Em 1961, surpreendentemente, Nana largou tudo para se casar com o médico Gilberto José Aponte Paoli e mudou-se para a Venezuela. Lá, nasceram suas filhas: Stella Teresa (em 1962) e Denise Maria (em 1963).

Mas a música seguiu em sua vida. Três anos depois, participou do disco “Caymmi visita Tom e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo”, ao lado do pai e dos irmãos. No ano seguinte, gravou pelo selo Elenco seu primeiro LP, “Nana” e, em dezembro, separou-se do marido e voltou para o Brasil grávida (do filho João Gilberto), com as filhas.

— A gravação desse LP praticamente decidiu o fim do meu casamento. Fiquei muito emocionada, senti que não podia viver longe da música e das pessoas com quem eu me identificava musicalmente — contou ela ao GLOBO, em 1973.

“Fugi, praticamente, da Venezuela para atender a um apelo maior. Para dar uma resposta a mim mesma. Para fazer o que seu sentia necessidade de fazer: música.”

Segundo casamento, com Gilberto Gil

Em 1966, Nana venceu o I Festival Internacional da Canção da TV Globo, interpretando a canção “Saveiros”, do irmão Dori com Nelson Motta.

No ano seguinte, veio o segundo casamento, com Gilberto Gil. Com ele, compôs “Bom dia”, canção apresentada no III Festival de Música Brasileira (TV Record), em 1967. No ano seguinte, Nana e Gil estariam separados, mas não antes dela gravar compacto duplo, em que foi acompanhada pelos Mutantes de Rita Lee, cantando “Bom dia”, “Alegria, alegria” (Caetano Veloso), “O cantador” e “O penúltimo cordão” (do irmão Danilo com Caetano e Sergio Fayne).

— Os Mutantes eram jovens, ingênuos e faziam vocais ótimos. Eu vivi a Tropicália de todas as formas, só não a entendia! Ah, e outra coisa que não entendi foi a passeata contra as guitarras elétricas — disse Nana ao GLOBO, em 2012, referindo-se à manifestação organizada em São Paulo pelos representantes da MPB contra a jovem guarda, da qual, inclusive, um Gil pré-tropicalista participou. — Ah, mas o Gil foi na conversa da maluca da Elis (Regina). Eu devo ter aproveitado a passeata para vir ao Rio, ir à praia.

Nana Caymmi adentrou os anos 1970 cantando com talentos emergentes da MPB, como Marcos Valle, e fazendo shows pelo Brasil, Uruguai e Argentina. Em 1973, gravou pelo selo argentino Trova, o seu segundo LP, “Nana Caymmi”, com várias composições do pai, “O amor é chama” (dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle), “Atrás da porta” (Chico Buarque e Francis Hime), “Pra você” (Silvio César) e “Ahié” (Paulo César Pinheiro, João Donato e Flora Purim).

O álbum definitivo

Em 1975, a filha de Dorival Caymmi lançou o LP que a projetaria de fato no cenário da MPB: “Nana Caymmi”, no qual mergulhou de cabeça no repertório do Clube da Esquina, com “Ponta de areia” (de Milton Nascimento e Fernando Brant, com participações do próprio Milton e de Tom Jobim) e “Beijo partido” (do guitarrista Toninho Horta, que também tocou na faixa, incluída na trilha da novela “Pecado capital”), além de recriar de forma definitiva uma das canções do pai: “Só louco”.

Nos anos 1970, Nana cantou, com sucesso, o fino da MPB — Milton, Toninho, João Donato, Ivan Lins, Sueli Costa, João Bosco, Gonzaguinha e Claudio Nucci (do grupo Boca Livre, com quem foi casada entre 1979 e 1984). E manteve importantes parcerias com pianistas: caso de Donato (com quem viveu um romance), de Cesar Camargo Mariano (ex-marido e maestro de Elis Regina, com quem ela gravou aquele que dizia ser o disco de sua vida, “Voz e suor”, de 1983), Wagner Tiso (do álbum “Só louco”, de 1989) e Cristovão Bastos (que também lhe deu um de seus maiores sucessos, “Resposta ao tempo”, parceria com Aldir Blanc, abertura da minissérie “Hilda Furacão”, em 1998).

Boleros nos anos 1990

Em 1991, depois de meses cuidando do filho, que sofrera um grave acidente de moto, Nana Caymmi voltou ao cenário, participando, ao lado do irmão Danilo, de espetáculo realizado no Rio Show Festival (RJ), que reuniu o pai Dorival e Tom Jobim. Ela ainda cantou, com Dorival e Danilo, no Festival Internacional de Jazz de Montreux. O show foi gravado ao vivo e gerou o disco “Família Caymmi em Montreux”.

Nos anos 1990, Nana Caymmi lançou um CD só de boleros, “Bolero” (de 1993, que ela gravou “morrendo de vergonha”, na onde de cantores jovens, como Luis Miguel, e que foi um inesperado sucesso de vendas, com quase 100 mil cópias) e “A noite do meu bem – as canções de Dolores Duran”(1994). Em 1999, Nana foi contemplada com o primeiro disco de ouro de sua carreira, pelas 100 mil cópias vendidas do CD “Resposta ao tempo”.

— No dia em que eu, carioca do Grajaú, vender um milhão de discos, vão vender mais Drummond e Vinicius. Vai ter tumulto em livraria! — ameaçava ela, em 1998, em entrevista ao “Jornal do Brasil”.

Morte dos pais

Em agosto de 2008, com o falecimento dos pais, Dorival e Stella Maria, num curto intervalo de tempo, Nana chegou a cogitar a possibilidade de deixar a carreira artística, mas no ano seguinte voltou a ser falada por causa do dueto com Erasmo Carlos em “Não se esqueça de mim”, executado com sucesso na novela “Caminho da Índias”. Em 2010, o diretor franco-suíço Georges Gachot lançou um documentário sobre a cantora, “Rio Sonata”.

Distante dos palcos desde 2016, depois de passar por uma cirurgia de remoção de um tumor cancerígeno na parte externa do estômago, a cantora, contudo, não deixou de gravar discos, como “Nana Caymmi canta Tito Madi” (que em 2019 foi indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira) e “Nana, Tom, Vinícius” (indicado em 2021 ao Grammy Latino de Álbum do Ano).

— Não pisei na bola no meu repertório, não gravei o que não queria ter gravado, teria feito tudo igual — gabava-se Nana em 2021, ao GLOBO, dizendo no entanto, acreditar que “o povo cancelou o tipo de música” que ela fazia.

“Estou defasada, o canto não é mais uma coisa que se queira ouvir, os meus fãs estão velhos. Com o fracasso do disco, com a queda das gravadoras, com essa música que está sendo tocada no Brasil… Isso não é para mim! Não é que eu tenha me aposentado, me aposentaram.”

Na mesma entrevista, Nana reclamava ter sido “mal interpretada e jogada às trevas” em 2019 por declarações simpáticas a um Jair Bolsonaro ainda em início de governo. Nas redes sociais, alguns se questionavam: era possível cancelar Nana Caymmi e deixar de ouvir os seus discos?

— Se quiser me cancelar, cancela. Não deixei de comer por causa disso. Achei até engraçado, uns iam jogar meus discos fora, outros me quiseram morta — gracejou Nana. — No Brasil, você não pode ter opinião, você é malhado feito Judas. Infelizmente, aqui é gado, tem que ir um cheirando o rabo do outro. A internet deu vazão à frustração, a pessoas sem o menor gabarito que condenam outras à morte.

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