A reforma trabalhista aprovada durante o governo Temer, em 2017, trouxe alterações significativas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sob a promessa de ampliar a autonomia e a flexibilidade nas relações. Na prática, porém, essas mudanças têm exposto e colocado em debate uma outra realidade vivenciada por esses trabalhadores, que denunciam a precarização e a perda de direitos trabalhistas.
De acordo com o último levantamento do IBGE, em 2023, em relação a ocupação de maiores de 14 anos no setor privado, o Brasil contava com 2,1 milhões de brasileiros trabalhando por meio de plataformas digitais. Esses trabalhadores, em média, cumprem jornadas mais longas, apresentam maior taxa de informalidade e têm menos proteção previdenciária do que os demais brasileiros. Diante dessas condições, são recorrentes protestos de entregadores, como o recente “breque dos apps”, greve promovida por motoboys que atuam em aplicativos de entrega, em março passado.
Para falar sobre como as relações de trabalho vêm se transformando nas últimas décadas, especialmente com o enfraquecimento dos vínculos formais, o Pauta Pública convidou o sociólogo Ruy Braga.
O sociólogo analisa como termos, antes sinônimo de estabilidade e conquista, passaram a ser criticados e desprezados, revelando uma profunda mudança simbólica e estrutural no mundo do trabalho. “Esse desmanche da utopia da sociedade salarial brasileira, de você ter um emprego protegido, ganhar um salário digno, trabalhar durante muitos anos numa empresa, viver uma aposentadoria digna, enfim, isso tudo fica para trás. […] E se não é alcançável, deixa de ser desejável. E se não é desejável, muitas vezes se transforma em algo que é motivo de repulsa”, diz.
Um menino negro de 9 anos, cotista, matriculado numa escola privada do Maranhão, foi vítima de racismo e apelidado de CLT pelos colegas. Eles chegaram a fazer uma réplica da carteira de trabalho feita à mão para reforçar o bullying verbal. Em que momento ter um registro na carteira de trabalho, ser CLT, deixou de ser um motivo de orgulho para se tornar uma ofensa?
Esse é um caso que expressa muito bem aquilo que eu chamo de desconstrução da sociedade salarial no Brasil. Desde 1943 com a promulgação da CLT, a sistematização daquelas leis foram sendo aprovadas e diziam respeito basicamente à questão da proteção do trabalhador urbano e a criação de um mercado formal de trabalho no país. Desde 1943, a CLT foi um instrumento essencial do processo de desenvolvimento do capitalismo no país, porque entre outras coisas, o diferencial entre ter direitos nas cidades, não ter direito, por exemplo, no mundo rural, atraiu a massa rural, em um enorme histórico processo de migração campo-cidade.
Isso explica a industrialização e urbanização brasileiras, e estamos falando de uma longa lista de direitos que foram sendo conquistados durante esse período, como os direitos previdenciários, associados à questão do trabalho formal. A proteção, o seguro desemprego, isso tudo está dentro desse contexto de criação de uma sociedade salarial no país. A partir dos anos 90, com o colapso do modelo nacional desenvolvimentista, o que se verifica é um lento, porém, muito estável, processo de desconstrução dessa utopia, desse tipo de sociedade integrada pelo salário e que, por sua vez, estabelecia uma conexão muito íntima entre progresso individual de um lado e direitos sociais coletivos por outro.
Hoje você tem um um problema muito grave que é a incapacidade que os sindicatos no país tem de atrair a juventude. O que eu posso perceber quando eu leio essa notícia desse garoto no Maranhão, enfim, hostilizado pelos colegas, chamado de CLT e coisa do gênero, o que eu posso perceber é que há um enraizamento muito forte dessa desconstrução da sociedade salarial, no caso brasileiro, que atinge, enfim, esse universo infantil.
Mas em que momento o que antes era uma garantia de direitos passou a ser uma espécie de certificado de precariedade no imaginário da população?
O país passou ao longo dos anos 2000, 2010, por inúmeras reformas da previdência. Primeira reforma do funcionalismo público, depois da reforma do setor privado. O país passou por reformas trabalhistas que retiraram direitos e enfraqueceram, de fato, a capacidade da legislação de proteger o trabalhador. Nos anos 2000 teve uma guinada muito muito aguda da estrutura sócio-ocupacional brasileira na direção dos serviços.
O que é a expressão de um processo precoce de desindustrialização do país, o que a gente verifica na verdade é uma concentração muito forte daqueles empregos que pagam 1.5 salário mínimo. Ou seja, no mercado formal brasileiro, a partir dos anos 2000, se especializa em criar ocupações que pagam muito pouco.
Então, quando você observa o tipo de emprego que se oferta, que é o emprego mais comumente associado à CLT, esse emprego, o trabalho formal é subalterno, com baixa qualificação, jornadas muito longas. E que, ao mesmo tempo, combina o bom e velho despotismo gerencial, característico de uma sociedade que passou pelo escravismo e assim por diante, com salários muito baixos, jornadas muito longas e baixíssima representatividade sindical. Isso tudo acaba fazendo com que esse tipo de emprego [CLT] não seja atraente, principalmente para juventude e abra um espaço muito grande para que esses jovens entrantes, trabalhadores entrantes no mercado de trabalho prefiram outras opções.
Essa desconstrução, esse desmanche da utopia da sociedade salarial brasileira, de você ter um emprego protegido, ganhar um salário digno, trabalhar durante muitos anos numa empresa, se aposentar, enfim, viver uma aposentadoria digna, isso tudo fica para trás. Quer dizer, isso tudo não está mais no horizonte dessa juventude, porque não surge mais como algo que é alcançável. E se não é alcançável, deixa de ser desejável. E se não é desejável, muitas vezes se transforma em algo que é motivo de repulsa. Como se aqueles que fossem protegidos, na verdade fossem pessoas preguiçosas, que estão acomodadas na vida e não querem empreender. Ou seja, que não tem a mesma ética do trabalho que esses jovens entrantes precisam apresentar para ter alguma possibilidade propriamente de ganhar um dinheiro e subsistir nessa nova realidade.
Faz pouco tempo vimos manifestações dos trabalhadores de aplicativos exigindo aumento e melhores condições. Existe espaço de debate hoje no legislativo para se pensar em pautas que possam ir além da proteção dos assalariados CLT e contemplem também os plataformizados?
A gente pode ter um vislumbre disso analisando a pauta de reivindicação do Breque dos Apps. Então, você tem, por exemplo, a demanda por um pagamento mais justo pelas corridas, pelas entregas. Você não pode naturalizar o que as empresas fazem com muita frequência. O que as empresas costumam fazer, por meio da sua inteligência artificial e dos seus algoritmos da sua administração algorítmica super moderna é o seguinte: elas reúnem vários pedidos numa mesma rota de entregas e pagam apenas pelo trajeto mais longo. O trabalhador tem que se desdobrar para realizar várias entregas, recebendo como se fosse apenas uma, porque as outras estavam ‘no caminho’. A empresa acumula entregas e paga uma só.
Isso precisa acabar. É necessário haver um reajuste da remuneração. As empresas alegam que houve um pequeno aumento nos últimos dois anos, um pouco acima da inflação — o que eu nem sei se é verdade —, mas o problema é que o patamar da remuneração desses trabalhadores é tão baixo, os riscos são tão altos, que isso é claramente insuficiente. Não chega nem perto do que seria o mínimo necessário para que o trabalhador pudesse garantir a própria subsistência e uma vida digna para si e para sua família. As pessoas estão vendendo o jantar para comprar o almoço. É uma situação muito difícil.
Então, em primeiro lugar, você precisa ter uma remuneração melhor. Para isso, o governo pode, sim, atuar. O governo pode convocar, exigir que as empresas se sentem numa mesa de negociação coletiva nacional e redefinam esse patamar mínimo de remuneração. O governo nunca fez isso. Já propôs mesas de negociação, mas nunca definiu um mínimo — pelo menos não do ponto de vista dos trabalhadores. Aquele mínimo que foi negociado favorecia as empresas, mas não os trabalhadores.
O governo precisa assumir o ponto de vista dos trabalhadores. Precisa, de fato, defender os interesses deles — e isso não está acontecendo. Não adianta tergiversar: isso não está acontecendo. Em segundo lugar, o governo precisa, com urgência, negociar com as empresas, especialmente aquelas de entrega e transporte por aplicativo, que envolvem mais riscos de acidentes e compartilhar com elas a responsabilidade sobre esses riscos.
O SUS não pode assumir sozinho toda essa carga, cuidando dos trabalhadores acidentados. As empresas precisam colaborar com a criação de um fundo coletivo de amparo a esses trabalhadores. Elas precisam contribuir, junto com o governo. O governo precisa assumir, de fato, as demandas dos trabalhadores. Caso contrário, essa crise não vai se resolver. Ela vai continuar se reproduzindo e se ampliando, porque cada vez mais trabalhadores vão depender das plataformas para sobreviver. Então, não tem outro caminho.