
Há um ano, o Rio Grande do Sul enfrentava um dos piores e mais dramáticos momentos de sua história. Chuvas intensas e volumosas começaram a cair sobre a Região dos Vales, no final de abril, se estendendo pelo mês de maio ao longo do estado. Com rapidez, rios como o Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí ficaram sobrecarregados, transbordando para cidades do entorno, até descer para o Guaíba, tomando a Região Metropolitana e desaguando na Lagoa dos Patos, no Sul.
Ao todo, 184 pessoas perderam a vida — uma delas só foi identificada há poucos dias — e ainda existem 25 desaparecidos. Do total de 497 municípios gaúchos, 478 foram atingidos, o que corresponde a 96% das cidades, de maneira que quase 2,4 milhões de pessoas foram afetadas e cerca de 80 mil ficaram desalojadas ou desabrigadas, segundo dados da Defesa Civil.
De acordo com o estudo feito pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e divulgado no final do ano passado, os danos no território gaúcho somaram quase R$ 89 bilhões, dos quais 69% (R$ 61 bilhões) correspondem ao setor produtivo, 21% aos setores sociais (R$ 19 bilhões); 8% à infraestrutura (R$ 7 bilhões); e 1,8% ao meio ambiente (R$ 1,6 bilhão).
Adaptação necessária
Ao longo do último ano, o estado passou por uma série de intervenções públicas para lidar emergencialmente com problemas como o cuidado aos desabrigados e a reconstrução de estradas, infraestrutura, prédios públicos e privados, plantações e moradias.
Mas, após aquele momento em que a urgência se fazia presente de todas as formas, o foco passou a ser, principalmente, a reconstrução das cidades e a proteção e prevenção contra a possibilidade de novas tragédias dessa magnitude.
Embora a chuva de 2024 tenha sido sem precedentes, não é novidade que os efeitos da crise climática trouxeram grandes transformações e desafios dentro e fora do Brasil. Em 2015 e final de 2023, por exemplo, chuvas fortes trouxeram graves consequências ao estado.
Soma-se a esse conhecimento empírico as diversas pesquisas e estudos científicos sobre a questão. Entre eles está o relatório “Brasil 2040”, feito há uma década pela Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, a pedido da Presidência da República e resgatado pelo The Intercept. O material apontava, por exemplo, para a “possibilidade de aumento de frequência dos eventos de cheia e inundações na região Sul e de eventos de seca nas regiões Norte e Nordeste”. Mesmo com tudo isso, pouco foi feito para preparar o estado nos últimos anos.
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Após a tragédia, outro estudo, feito por 13 cientistas (dos quais dois brasileiros), vinculados ao centro de pesquisas World Weather Attribution (WWA), apontou que os efeitos do aquecimento global, somados à falta de preparação estrutural para esse tipo de evento, duplicou a chance de ocorrências como essas no RS, com aumento de 6% a 9% de intensidade.
Considerando essa realidade e o tempo já perdido, é imprescindível e cada vez mais urgente colocar em prática formas de mitigar a crise e, ao mesmo tempo, lidar com aqueles efeitos que, ao menos por ora, são incontornáveis.
No RS, isso demanda, entre outras medidas, mudar bairros de áreas facilmente inundáveis; revitalizar e preservar o meio ambiente e investir em obras e sistemas capazes de proteger as cidades contra cheias, bem como lidar com as fortes estiagens — dois extremos comuns no estado que tendem a ser cada vez mais frequentes.
Ações imediatas e ações estruturantes
Se por um lado, é fato que boa parte das ações necessárias para reformular o estado sejam de alta complexidade e demandem mais tempo, por outro especialistas concordam que hoje o estado também não está preparado para prever ou lidar adequadamente com chuvas volumosas, semelhantes às do ano passado, nem em questões de resolução mais fácil.
Fernando Dornelles, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, diz que diante dos eventos já ocorridos, o estado deveria, ao longo das últimas décadas, ter se debruçado sobre saídas para se preparar frente a eventos desse tipo. “Cabe muito bem, nessa situação, aquele ditado popular da ‘casa arrombada, tranca de ferro’. Ou seja, foi preciso sofrer o dano para que os gastos ocorressem”, salienta.
Ele divide as medidas necessárias em duas categorias. Uma engloba as de caráter estruturante, e que levam mais tempo para serem feitas, como por exemplo o dique do Sarandi, em Porto Alegre, ou a mudança de bairros em cidades como Roca Sales, Muçum e Eldorado do Sul. “Estas não são ações de meses, mas de anos ou de décadas, até para a gente conseguir fazer uma reestruturação urbana adequada”, explica.
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A outra categoria é a das ações mais imediatas. “Mês que vem, se acontecer uma inundação de novo e se tiver alerta a tempo, como é que a gente vai enfrentar essa situação?”, questiona o professor. Dornelles complementa dizendo: “nós sofremos tudo aquilo, mas ainda não temos ações de percepção de risco bem e amplamente adotadas e divulgadas”.
Para ele, o primeiro passo é demonstrar como que está a questão da previsão de cheias e ter modelos rodando operacionalmente todos os dias. “A gente precisa ter um horizonte de cinco a 15 dias à frente, em média, para termos uma ideia do que pode acontecer a partir de previsões meteorológicas. E verificar qual o potencial de chuva para um determinado período e a que isso corresponde em relação ao nível dos rios”, afirma.
De acordo com o governo estadual, “um novo serviço de radar meteorológico foi contratado e já está operando, com um investimento de R$ 25,94 milhões”. Mas, conforme pondera Dornelles, um radar meteorológico “mede o que está acontecendo e oferece previsão de curtíssimo prazo”.
E, conforme apontou reportagem do site Matinal, de Porto Alegre, à exceção de um novo radar meteorológico já instalado na capital gaúcha em agosto, “os projetos de ampliação e recuperação da rede de monitoramento ainda não estão em execução e não há previsão de quando ocorrerá a implementação completa”.
Já o governador Eduardo Leite (PSDB) afirmou à Folha de S.Paulo, há poucos dias, que “já temos sistemas de monitoramento de alertas mais robustos neste momento. Implantamos radares meteorológicos que darão condição de alertas mais precisos para a população. Estações hidrometeorológicas foram recuperadas e novas estão implantadas”.
Reconstrução

Desde que a tragédia aconteceu, uma série de aportes — advindos principalmente dos governos federal e estadual — vem sendo feita. No caso da governo estadual, Leite tem apostado suas fichas no Plano Rio Grande, “programa de reconstrução, adaptação e resiliência climática, que propõe uma série de medidas para diminuir os impactos causados pelas chuvas”.
Além disso, segundo o governo, investimentos têm sido feitos na Defesa Civil — com R$ 148 milhões desde o início da calamidade — e o programa de desassoreamento de rios e canais “tem R$ 300 milhões para o planejamento e a execução, que já está acontecendo. A dragagem das hidrovias gaúchas também iniciou e custará R$ 731 milhões”, informa.
Por outro lado, há falhas que vêm sendo evidenciadas e que vão desde a execução de projetos a partir de verbas já liberadas pelo governo federal até o desmonte de estruturas e políticas públicas.
Há poucos dias, o mesmo site Matinal denunciou que embora o estado tivesse R$ 6,5 bilhões disponibilizados desde o final do ano no fundo extraordinário criado pelo governo Lula para a recuperação e intervenções no RS, a gestão de Eduardo Leite não buscou acessar os recursos.
Após o caso vir a público, o governador enviou um ofício pedindo a liberação imediata de R$ 3 bilhões. Leite disse que aguardava as diretrizes para aplicação das verbas e que as mesmas só teriam sido publicadas pela Casa Civil no dia 15, o que foi desmentido pelo ministério.
A pasta argumentou ainda que em ofício direcionado ao governo gaúcho, a ministra substituta da Casa Civil, Miriam Belchior, explicou que “os R$ 6,5 bilhões aplicados no fundo estão disponíveis para o pagamento de obras, serviços e projetos estruturantes de proteção contra cheias, dependendo agora de o governo estadual manifestar interesse à Caixa Econômica Federal em celebrar instrumento de repasse dos recursos”.
O valor do fundo é apenas uma parte do que foi destinado pela esfera federal ao estado, que tem o papel de executar a maior parte das ações necessárias junto com os municípios.
Balanço recente do governo Lula aponta que desde o início da tragédia, R$ 111,6 bilhões foram destinados ao estado, dos quais R$ 89 bilhões (80% dos recursos previstos) já foram executados em ações de recuperação da infraestrutura das cidades, estímulo da economia local (empresários, indústria, serviços, trabalhadores autônomos), repasse direto às famílias e aquisição de moradias. Desse total, os valores utilizados em ações voltadas ao cuidado com as pessoas somaram R$ 15,6 bilhões.
O governo destaca, ainda, a suspensão da dívida do estado, que, somada aos valores que deixarão de ser recolhidos em juros nos próximos três anos, representa R$ 23 bilhões em alívio fiscal.
“O resultado foi que o PIB do Rio Grande do Sul no ano passado cresceu 4,9%. Então, se cresceu o PIB é porque se recuperou a economia, o setor de serviço, o comércio, a indústria, as atividades de um modo geral”, disse o ministro Waldez Góes, da Integração e do Desenvolvimento Regional. Segundo ele, o atendimento ao RS foi “uma resposta realmente nunca vista na história do Brasil”.
O post RS ainda enfrenta gargalos para se tornar seguro e resiliente às enchentes apareceu primeiro em Vermelho.