“Doutor Araguaia” estreia em São Paulo e resgata vida do médico morto pela ditadura

Nesta quinta-feira (24), o Cine-Teatro Denoy de Oliveira, na sede da UMES (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo), em São Paulo, foi palco da estreia paulista do filme Doutor Araguaia, documentário que narra a trajetória de João Carlos Haas Sobrinho — jovem médico gaúcho, desaparecido político e combatente da Guerrilha do Araguaia. Com direção de Edson Cabral e roteiro em parceria com Sônia Haas, irmã de João Carlos, o filme comove por sua sensibilidade e contundência histórica. A sessão especial reuniu familiares de João Carlos, como sua irmã Sônia, e ex-guerrilheiros que conviveram com ele, como José Genoíno e Crimeia Almeida.

“Esse filme precisa ser conhecido por todos os brasileiros”, afirmou o produtor Odilon Camargo, durante o lançamento. “Durante os longos anos da ditadura, os donos do poder impediram a divulgação das atrocidades cometidas. E, até hoje, a grande mídia ignora essa história.” Ele criticou a persistente invisibilidade dada pela grande mídia às atrocidades cometidas durante a ditadura (1964-1985). “Mesmo depois de 1985, a grande mídia continua ignorando essa história, os detalhes das atrocidades todas cometidas durante esse período.”

Camargo relembrou o contexto político de 1963, quando João Carlos, então presidente do Centro Acadêmico de Medicina da UFRGS, já demonstrava seu compromisso social ao defender uma “universidade do povo” e a democratização do ensino. Um ano após o golpe militar, sua trajetória foi interrompida com a prisão.

Produzido com apoio da Lei Paulo Gustavo e da Fundação Maurício Grabois, o longa de 90 minutos já passou por 15 cidades e chega à capital paulista com a missão de resgatar uma história que ficou soterrada por décadas de silêncio e medo.

Um documentário de amor, luta e poesia

O documentário revive a trajetória do jovem médico que, nos anos 1960, trocou a carreira promissora pela luta armada contra a ditadura militar. Formado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Haas tornou-se líder estudantil e, após o golpe de 1964, integrou a Guerrilha do Araguaia, atuando como médico comunitário em regiões isoladas do sul do Maranhão e norte de Goiás (hoje Tocantins).

Em vez de mostrar as imagens da brutalidade do regime militar, o filme foca na personalidade encantadora do médico que conquistou a todos por onde passou. Os depoimentos de seus pacientes (e amigos) revelam relatos vivos, como se João Carlos tivesse acabado de partir. Como sua irmã Sônia diz emocionada, é como se essas pessoas conhecessem facetas de seu irmão que a família não teve a oportunidade.

Preso e morto durante a repressão, seu corpo nunca foi encontrado, transformando-o em um símbolo de resistência. O filme utiliza depoimentos, registros históricos e paisagens da Amazônia para reconstruir sua saga.

As declarações colhidas pelo Portal Vermelho durante o evento ecoaram a importância de manter viva a memória desse período sombrio da história brasileira. A força do documentário vai além do conteúdo histórico. Com imagens captadas em sete estados, trilha original e poesia visual, Doutor Araguaia rompe com o formato convencional. “Nosso desafio era transformar uma história de dor em uma obra bonita, sem perder a força da luta”, explicou o diretor Edson Cabral em entrevista.

Segundo ele, João Carlos é apresentado como um jovem brilhante, que trocou uma carreira promissora pela militância revolucionária. Como médico popular, atuou nas regiões de Porto Franco (MA) e no norte do atual Tocantins, antes de se integrar à guerrilha. “É um filme poético, biográfico, investigativo e emocional”, resumiu Cabral. A narrativa é costurada por depoimentos de familiares, ex-militantes e moradores das regiões onde João Carlos viveu.

A plateia reuniu personalidades históricas da resistência à ditadura militar.

Uma recepção marcada pela emoção

A cada sessão, o filme provoca reações diferentes, mas sempre profundas. “Cada lugar tem um toque único”, relatou Sônia Haas a reportagem. Ela destacou como os mais antigos revivem a luta, enquanto os jovens encontram em João Carlos um “exemplo positivo”. A exibição em São Leopoldo foi particularmente marcante, proporcionando um “retorno” simbólico de João Carlos à sua cidade natal. “Em São Leopoldo, cidade natal do João Carlos, foi como um velório simbólico — as pessoas se reencontraram com ele. Já em Porto Franco, ele continua vivo na memória da comunidade: relembram o médico, o amigo, o vizinho, o homem que fazia bolinho de arroz e jogava futebol.”

Para Sônia, o filme é também uma jornada pessoal. “Nossa família nunca teve um velório, um corpo para chorar. O documentário nos permitiu resgatar João Carlos e compartilhar sua luz”, desabafa. Em cenas emocionantes, moradores do Maranhão relembram o médico que atendia comunidades ribeirinhas, muitas vezes sem cobrar. “Ele era um homem do povo, que acreditava na saúde como direito”, conta um agricultor entrevistado.

Sônia e a equipe enfrentaram desafios para resgatar fragmentos de sua história. “Foi necessário vasculhar arquivos, conversar com sobreviventes e familiares, e até musicar poemas escritos por ele na selva”, explica Cabral. O documentário combina gêneros: é ao mesmo tempo biográfico, investigativo e poético, com trilha sonora original que inclui a canção Forças do Guerreiro do Araguaia, baseada em versos deixados pelo médico.

Ex-guerrilheiros se emocionam juntos

Foi uma oportunidade inédita de reunir ex-guerrilheiros como José Genoino e Crimeia Almeida numa homenagem a João Carlos Haas Sobrinho, companheiros de luta no Araguaia

A exibição em São Paulo contou com a presença de nomes como José Genoíno, ex-guerrilheiro, que emocionou-se ao lembrar da convivência com João Carlos: “Essa memória transforma. A luta valeu — e vale — a pena.” Genoíno ressaltou a importância da memória trazida pelo filme para o presente e para o futuro, oferecendo “exemplos heroicos” para as novas gerações de lutadores por emancipação e justiça social. “Essa memória não é olhar o passado apenas, é trazer para o presente e para o futuro”, afirmou.

Além dele, Crimeia Almeida também falou da importância do filme como inspiração para as novas gerações. Ela ecoou a importância de conhecer essa história para evitar a repetição de erros, lamentando a perda de sua geração na luta contra a ditadura. “Eu acho muito importante o filme porque essa história é desconhecida, então tudo que se faz para conhecer essa história é importante. Porque o povo que não conhece a sua história está sujeito a repetir os erros. E isso está acontecendo. Lembrar do João Carlos nesse filme foi emocionante, apesar do tempo passado… A minha turma daquela época não existe mais nenhum vivo, são todos desaparecidos”.

Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, elogiou a abordagem humana do filme, que permite entender a “barbaridade” cometida contra aqueles que lutavam por um mundo melhor. “Contar quem foi o João Carlos, que médico foi esse, como que ele atendia, a magnitude do trabalho dele no interior. Então isso humaniza, faz com que as pessoas entendam a barbaridade que foi cometida contra esses heróis, essas pessoas que no fundo queriam apenas um mundo melhor”.

João Carlos Amazonas, engenheiro, filho de João Amazonas, assistiu o filme como familiar do comandante da guerrilha e ex-presidente do PCdoB, lamentando como a mídia brasileira trata os absurdos da ditadura como se nada fossem: “Muitos jovens morreram, foram trucidados, torturados e assassinados. Uma coisa pesada na nossa história, mas é como essa tragédia da Covid também, que as pessoas já esqueceram, sendo que 700 mil pessoas morreram. É importante contar o filme para sempre ressaltar que essas pessoas lutaram para que o país tivesse liberdade”, afirmou

Também participaram Nivaldo Santana, conselheiro da Fundação Maurício Grabois e secretário Sindical do PCdoB, e o jornalista e historiador Oswaldo Bertolino, que destacou a importância histórica do personagem. Ele descreveu João Carlos como um personagem “decisivo” na Guerrilha do Araguaia, com forte ligação com a população local. “Ele é um verdadeiro ídolo daquela região, a memória dele é muito forte ali, ainda hoje”, afirmou, relembrando sua própria experiência em reportagens na área. Bertolino ressaltou a importância do filme para “desmascarar as calúnias, as mentiras, os crimes da ditadura”, inserindo a guerrilha como um ponto crucial na história da luta popular contra a opressão.

Filmado em sete estados brasileiros, o projeto contou com recursos da Lei Complementar 195/2022 e apoio da Fundação Maurício Grabois, que viu na obra uma forma de “combater o esquecimento” e fortalecer a defesa da democracia.

O filme surge em um contexto de polarização política e ameaças às instituições democráticas. Nivaldo Santana enfatizou o papel do filme em “afirmar convicções” sobre a importância da democracia e da liberdade, atuando como um “antídoto poderoso” contra a repetição de regimes ditatoriais. Ele destacou o idealismo e o compromisso de João Carlos com os mais pobres, que o levaram a trocar uma vida confortável pela atuação na saúde e na organização popular no interior do Brasil.

O documentário não apenas homenageia um herói anônimo, mas alerta para os riscos de regimes autoritários, usando a poesia e a música para tornar a história acessível a novas gerações.

Resistência, exemplo e missão

A história de João Carlos Haas Sobrinho é, para muitos, um símbolo do que foi a ditadura militar no Brasil — e do que precisa ser lembrado. “Ele viveu 31 anos, mas deixou raízes profundas”, afirmou Nivaldo Santana. “Seu exemplo contribui para fortalecer nossas convicções por um Brasil democrático, justo e soberano.”

Para Sônia, levar o documentário adiante é parte de uma missão pessoal e coletiva: “Não podemos deixar essa história morrer. Gritar essa verdade é nossa obrigação.” Com mais de 3 mil espectadores em sessões por todo o país, Doutor Araguaia já foi selecionado para festivais, como o de Lisboa, e deve seguir para plataformas de streaming com legendas em inglês e espanhol, ampliando seu alcance, e exibições especiais, reforçando o papel da arte como ferramenta de memória e justiça.

A estreia de “Doutor Araguaia” em São Paulo não foi apenas a exibição de um filme, mas um ato de resgate da memória, de homenagem a um herói da resistência e um chamado à reflexão sobre um período que ainda ecoa na sociedade brasileira. A emoção dos presentes e a força dos depoimentos colhidos demonstram o impacto profundo dessa história e a urgência de que ela seja conhecida e debatida por todos.

Ao entrelaçar a dor de uma família, a beleza da resistência e a urgência da democracia, o filme reafirma que histórias como a de João Carlos não podem ser enterradas. Como disse um sobrevivente da guerrilha: “Ele plantou sementes que ainda vão florescer”.

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