Espinha na garganta: A semana santa e o gesto cruel do ex-prefeito Manoel Botafogo

Por Flávio Chaves*

Há gestos na política que o tempo não apaga. Palavras que não se dissolvem no esquecimento, porque ferem como lâmina e doem como espinha atravessada na garganta da memória coletiva. Em Carpina, município da Zona da Mata Norte de Pernambuco, um desses episódios ainda ecoa com amargura nas conversas do povo, especialmente quando chega a Semana Santa — tempo de reflexão, fé e partilha. Mas também, infelizmente, tempo de lembrar a frieza de um gesto que marcou a cidade com tristeza e revolta.

O episódio remonta a um dos quatro mandatos do ex-prefeito Manoel Botafogo, que governou a cidade por longos 16 anos. Num desses mandatos, em plena Semana Santa, o então prefeito foi entrevistado ao vivo pelo radialista Francisco Júnior, no tradicional programa de rádio que cobria os assuntos da cidade com coragem e imparcialidade. Era um momento simbólico, em que muitos esperavam ouvir do gestor a renovação de uma prática comum entre os prefeitos que o antecederam: a distribuição de peixes à população mais carente — um gesto cristão, de solidariedade e respeito com os que têm pouco ou quase nada.

A pergunta foi simples, quase previsível, mas a resposta veio como um tapa: “Vai ter muita distribuição de peixe no comércio, vocês preparem cada qual seus R$ 20,00. A prefeitura não deve nada a ninguém.”

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Fria. Jocosa. Cruel. A declaração caiu como uma cruz sobre os ombros dos que esperavam o mínimo de compaixão. Não apenas um não, mas um deboche. Não apenas uma negação, mas uma humilhação pública. E o mais irônico — ou talvez o mais triste — é que ela veio de alguém que se apresenta como evangélico, que se diz cristão. Mas que, naquele momento, negou o gesto mais essencial da fé: a solidariedade com o próximo.

A dor daquela resposta reverberou. O povo simples, os moradores dos bairros periféricos, os que contam moedas para comprar o pão, sentiram ali não apenas a ausência do peixe na mesa, mas a presença do desprezo. De lá pra cá, a Semana Santa em Carpina passou a carregar dois sofrimentos: o da Paixão de Cristo e o da lembrança amarga de um prefeito que negou pão e peixe a quem mais precisava.

A imagem de Cristo crucificado, que ensina o perdão, a humildade e o amor ao próximo, contrasta com a figura pública de Botafogo, que naquele gesto se fez símbolo do descaso e da insensibilidade. A tradição foi quebrada, a esperança esmoreceu, e Carpina, naquela Semana Santa, conheceu o gosto da injustiça no prato vazio.

É por isso que, ano após ano, essa memória retorna como espinho cravado. O povo de Carpina não esquece. Porque há dores que não cicatrizam — e há políticos que, mesmo após deixarem o poder, continuam sendo lembrados não pelos prédios que construíram ou pelas obras que inauguraram, mas pelas feridas que deixaram nas almas e nas mesas vazias do povo.

Hoje, Carpina vive outros tempos, outras administrações. Mas a lembrança daquele gesto segue viva. Não como mágoa apenas, mas como alerta. Que jamais se repita. Que a política volte a ser lugar de serviço, e não de escárnio. Que a fé que tantos professam se traduza em ações concretas de partilha e humanidade.

Porque na mesa do povo, especialmente na Semana Santa, não deve haver espaço para o abandono. Nem para a crueldade travestida de gestão.

*Jornalista, poeta e escritor

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