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Moro no centro de São Paulo, próximo ao “Minhocão”, a excrescência arquitetônica criada pelo ex-prefeito Paulo Maluf, que separou definitivamente o bairro de Campos Elíseos, agora em processo de gentrificação, de bairros há muito valorizados como Santa Cecília e Higienópolis.
Aqui também vive boa parte dos quase 100 mil moradores de rua da capital mais rica do país, reflexo de políticas públicas elitistas, equivocadas ou simplesmente ausentes.
Para ficar em um número: o déficit habitacional em São Paulo ultrapassa 400 mil moradias, de acordo com o Censo de 2022, que também apontou quase 590 mil imóveis vazios na capital paulista. Há método no caos aparente.
Quando cruzo a avenida embaixo do viaduto, sinto o constrangimento de invadir moradias daqueles que, com muito pouco, conseguem criar um lar onde vivem crianças, idosos e até animais de estimação. Às vezes, surge um vazio ainda mais triste, provocado por operações da prefeitura que retiram pertences, colchões, cobertores para “higienizar” a cidade que escolhe quem acolher.
No ano passado, durante a inauguração do Parque Princesa Isabel – parte do megaprojeto de Tarcísio de Freitas para mudança da sede administrativa do governo -, o vice-governador Felício Ramuth disse que o governo pretende “devolver o centro da cidade para o cidadão de bem” e transformá-lo no “espaço mais vigiado e seguro” da capital.
Os cidadãos do “mal”, na declaração cristalina de Ramuth, são os pobres que ousam viver no centro, como sabe a camareira Simone Ferreira, moradora de uma das cinco quadras que serão demolidas para dar lugar ao projeto do governo estadual, uma parceria público privada de 4 bilhões de reais.
“Neste lugar, para eles, só tem bandido, pessoas que não prestam. É um preconceito racial. E agora vem o governador dizer que vai desapropriar esse lugar para colocar a classe média”, explicou Simone ao Intercept, depois de ser expulsa de sua casa com um papel na mão que seria a garantia de uma unidade habitacional no CDHU, ainda em construção.
A mesma promessa foi feita aos moradores da Favela do Moinho, alvo principal do ódio higienista de diversos prefeitos e governadores paulistas. Dessa vez, a expulsão vem pra valer, e dará espaço para um parque que compõe a planejada esplanada chique de Tarcísio e de seus sócios privados na especulação imobiliária.
Nos próximos dias, cerca de 900 famílias deixarão paulatinamente suas casas na favela do Moinho sem saber como irão viver com um auxílio aluguel de 800 reais (valor irrisório até para alugar um barraco em São Paulo) até que os conjuntos habitacionais fiquem prontos – sem prazo definido.
No centro só há moradia planejada para 100 famílias, as demais não sabem nem onde irão viver. Obviamente, para o governador, quanto mais longe do centro, melhor.
A reivindicação dos moradores da favela do Moinho era a regularização da área em que estão há décadas, que recentemente conseguiu ser atendida, ainda que precariamente, pelos serviços de água e luz. Ou pelo menos, que o acordo com o governo fosse feito chave-a-chave: eles sairiam de casa somente com a chave da nova moradia em mãos.
A vitória da gestão Tarcísio contra os “não-cidadãos” veio na sequência de operações policiais violentas na favela a pretexto de prender os traficantes da cracolândia, que fica ali perto. A última agressão policial ocorreu no último dia 15, quando o protesto dos moradores foi reprimido com bombas.
Com isso, boa parte dos moradores foi vencida pelo medo de ser despejada e ficar sem nada e aderiu à proposta habitacional do governo, apesar das incertezas que a cercam.
O governo diz que 86% dos moradores aceitaram deixar suas casas em troca de uma carta de crédito de 250 mil reais para comprar outro imóvel, que será paga em parcelas correspondentes a 20% da renda familiar. Uma despesa, além das taxas de condomínio, que eles não sabem se serão capazes de pagar, e que pode se estender por 30 anos.
Mais: para obter o imóvel – com metragem que varia de 20 a 40m2, é preciso ter renda superior a um salário mínimo, o que exclui uma boa parcela dos moradores, que chegaram a relatar terem sido orientados a mentir no cadastro para não ficarem fora do programa. Ou seja, o valor das parcelas pode representar bem mais do que os 20% prometidos.
Isso, se conseguirem a moradia, porque, não custa repetir, a maioria das unidades não foi sequer construída – o que pode demorar anos enquanto a PPP segue em ritmo frenético de eleições no ano que vem, provavelmente com Tarcísio candidato a presidente.
Como sabem os políticos, fazer obra dá dinheiro público para muita gente que tem bons lugares para morar. Inclusive no centro. Desde “que não tenham um bando de mendigos na porta tentando nos agarrar”, como dizia Odete Roitman, a vilã da novela global “Vale Tudo”, ainda hoje símbolo de uma elite egoísta e corrupta, servida por governantes de olho em seus próprios benefícios.
Trinta e sete anos depois da primeira versão da novela, que coincidiu com a promulgação da Constituição cidadã, o país da desigualdade, que o centro paulistano tão bem espelha, continua a mostrar sua cara.