‘A China precisa conhecer Goiânia, uma cidade eco-civilizatória’, diz arquiteta Narcisa Cordeiro

Narcisa Abreu Cordeiro é arquiteta, urbanista, pesquisadora, escultora, musicista e escritora. Especialista na obra de Attilio Correia Lima, o arquiteto e urbanista autor do plano urbanístico de Goiânia, Narcisa Cordeiro tem uma visão integral do passado, presente e futuro da capital. 

Apesar da degradação do patrimônio Art Déco de Goiânia, Narcisa Cordeiro se mostra otimista: “Vivemos uma oportunidade de valorização ímpar, com a atenção internacional voltada para a conciliação da modernidade com o meio-ambiente. Este foi um dos princípios que guiaram a fundação de Goiânia.” 

Uma mulher do seu tempo, multimídia e multiarte, Narcisa Cordeiro é também Botânica, Paisagista, Fotógrafa, Escritora, Poeta, Escultora, Soprano e Historiadora. É autora de diversos livros que contam a História de Goiás em várias vertentes. Desde 1994, ela ocupa a cadeira de número 35, da Academia Feminina de Letras de Goiás e ainda é membro de treze instituições culturais no Brasil e no exterior, entre eles o IHGG, a União Brasileira de Escritores, Associação Internacional dos Artistas Plásticos e o Instituto dos Arquitetos do Brasil. Tanto talento acabou se tornando um verbete em diversos dicionários litero-culturais.

Como o Art Déco se tornou o movimento artístico que guiou o nascimento de Goiânia?

Art déco é um movimento artístico do pós-guerra. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, houve a necessidade do retorno ao glamour, com o sentimento das pessoas quererem viver, viver, viver. É um movimento do modernismo, com grande influência (especialmente em Goiânia) de Alfred Donat Agache, arquiteto e urbanista francês que viveu no Brasil.

As discussões sobre urbanização no Rio de Janeiro no período do prefeito Prado Júnior, em 1927, influenciaram o projeto da nova capital de Goiás. Alfred Donat Agache, que foi presidente da Sociedade Francesa de Urbanismo, é uma referência histórica muito importante; quando se instalou no Rio de Janeiro, praticamente, montou ali um laboratório de urbanismo. Exerceu muita influência por meio de palestras e todo o conjunto de saberes que ele trouxe da França.

Naquele período, as ideias do movimento Art Déco não se restringiram apenas à prefeitura, pois o contexto era o da Revolução de 1930. Quando se ganha uma revolução, você quer que ocorra uma mudança. O projeto de reforma para o Rio de Janeiro incluia um dos planos diretores mais importantes e mais completos do Brasil. Por causa dele, até hoje, quando visitamos o Rio de Janeiro, vemos que a cidade tem um “quê” de Paris.

Filosofia de Ebenezer Howard, proponente das cidades jardins, foi aplicada em Goiânia por meio de Armando de Godoy, diz Narcisa Cordeiro | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Após Alfred Agache recusar, quem assumiu o projeto?

Então, Armando de Godoy, que trabalhou com Adolfo Agache no Rio de Janeiro, trabalhou no projeto por um período. Ele veio a Goiás, visitou as fazendas onde hoje fica Goiânia e deixou as diretrizes para a instalação da cidade com base nas cidades inglesas e alemãs. Godoy não assumiu inteiramente o projeto porque era um funcionário público no Rio de Janeiro. Poucas pessoas com vida estabelecida queriam largar tudo e vir para o “fim de mundo” que a região representava na época.

A filosofia de Armando de Godoy era muito ligada à das Cidades Jardins, uma concepção de Ebenezer Howard, pensador inglês. Howard era uma pessoa que vivia muito nas fazendas da Inglaterra naquele período industrial, quando Londres se tornava uma cidade insalubre. A Revolução Industrial só se deu quando Londres resolveu o problema do saneamento, e isso gerou o interesse desse pesquisador, Ebenezer Howard, que não era uma arquiteto de formação, mas uma pessoa muito estudiosa.

Howard acreditava que as cidades poderiam conciliar a vivência do campo com as exigências do urbanismo. Ele acreditava que as cidades deveriam ter um circuito formado a partir das estradas de ferro, com intercomunicações no entorno das urbes. E nós tivemos aqui a influência disso, já que a nossa estação ferroviária tem um pouco desse espírito.

Como essas ideias se traduziram no traçado de Goiânia?

O projeto de Goiânia foi um projeto de vanguarda. Cogitou-se, inclusive, a expansão de Goiânia com cidades satélites, muito antes da concepção de Brasília. Armando de Godoy pensou nisso tudo e escreveu em seus relatórios, que até hoje são muito avançados, porque precederam Brasília. E isso é pouco divulgado.

Antes de Goiânia, outras cidades já formavam um cinturão que, na visão de Godoy, poderia ser interligado: Aparecida, Goianira, Campinas, Senador Canedo, Bela Vista e outras. Urbanistas como Armando de Godoy previam uma organização em que houvesse um distanciamento entre elas formado por áreas verdes entre cada cidade e o núcleo de Goiânia.

Essa valorização do anel verde em volta de Goiânia explica a existência de vários parques em torno da cidade. Com o crescimento da capital, este cinturão verde se fragmentou, mas bosques, parques e jardins permanecem. Essa filosofia ecológica continua sendo vanguarda. 

Eu considero que Goiânia nasceu como símbolo ambiental. O nascimento de Goiânia é uma chancela importantíssima para o argumento de que o meio-ambiente pode ser concilidado com o crescimento urbano. Veja o Setor Sul, que até hoje mantém praças atrás das casas. O Setor Sul tem muito dessa característica de cidade jardim, baseada em Redwood, nos arredores de Nova York.

Planta do Setor Sul | Foto: Reprodução / Lary di Lua

É importante destacar que a preservação das praças no Setor Sul é fundamental. Não podemos desfigurar o bairro, ou Goiânia perde um pouco da característica de uma Cidade Jardim, e da identidade com que foi concebida. Essa identidade — uma cidade nascida da influencia de tendências europeias e americanas do início do século 20 — vive sob ameaça dos políticos em nome da expansão imobiliária. 

Quem quer descaracterizar o bairro por pressões imobiliárias, no entanto, desconhece que essa é uma chancela muito importante, que faz de Goiânia uma cidade referência mundial quando o assunto é urbanismo e preservação ecológica.

Quais outras influências foram importantes na formação de Goiânia

Considero Goiânia uma cidade “bem nascida”, não só no urbanismo. Tivemos muitas influências de imigrantes das cidades como Catalão, Araguari e tantas outras. E essas pessoas trouxeram muitos saberes para cá. A questão cultural formou o conteúdo da cidade, não só como traçado, mas no conteúdo humano. 

Como Attilio Corrêa Lima entra na história de Goiânia?

Attilio Corrêa Lima, que também era de uma escola francesa e tinha todo aquele conhecimento de urbanismo, se tornou o arquiteto e urbanista da capital.  Ele teve convivência com Agache; dizem que ele trabalhou para o Agache, e é claro que sofreu grande influência, até porque estava no Rio durante o mesmo período. Alfred Agache foi convidado para projetar Goiânia, mas o contrato não foi celebrado por duas razões — não houve interesse dele em permanecer aqui e as questões revolucionárias.

Attilio Correia já sabia que Goiânia teria de ser uma cidade para contrastar com o colonial. Estávamos transferindo a capital da cidade de Goiás para cá e, nesse contexto, era importante apresentar um urbanismo moderno, viabilizando a circulação, zoneamento e o arejamento das edificações. 

Para Goiânia servir de exemplo civilizador, o modelo de cidade colonial com aquelas casarões e ruazinhas, sem ventilação necessária, teria de ser superado. Attilio Correia pensou e planejou Goiânia para ser uma referência para o Estado e para o país. 

Plano urbanístico de Goiânia | Foto: Reprodução

Mas ele pensou numa Goiânia para 50 mil pessoas. Hoje, 92 anos depois, Goiânia tem quase 1,5 milhões de habitantes e virou uma metrópole. Como ele reagiria se visse a Goiânia do século 21?

Primeiro, seria um susto. Hoje, a morfologia é diferente daquela que foi planejada. Os prédios que estão aí impõem uma volumetria completamente diferente da que foi projetada; a proposta dele visava prédios mais baixos. Por causa da demografia, hoje nós temos uma densidade alta, congestionamentos de carros, o abandono do centro histórico, onde tudo começou — tudo isso deixaria Attilio Correia atônito. 

Por que o nosso Art Déco é considerado simplório?

Há uma simplicidade também decorrente da falta de tudo. Não tínhamos nada. Foi uma coisa muito penosa para os construtores e urbanistas levantarem tudo isso em uma região isolada. Imagine arrastar aqueles compressores com carro de boi. Conheci pessoas que guiaram aqueles carros de boi.

Compressor original usado nas ruas de Goiânia, exposto na Praça Cívica, na sede do IHGG | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

A senhora nasceu em Goiânia quando a cidade ainda era jovem. Quais memórias relacionadas à arquitetura a senhora tem do período?

Eu nasci em Goiânia em 1946, quando a cidade tinha 13 anos de idade. Morava numa casa na Alameda dos Buritis e fui vizinha do Pedro Ludovico, que morava no mesmo quarteirão. Me recordo dele sempre passar por ali, na frente de casa, com aquele terno branco a caminho do Cine Casablanca.

A senhora escreveu parte do dossiê de tombamento dos 22 prédios Art Déco pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Qual é o seu prédio preferido, entre os 22 que foram tombados?

Eu gosto muito do Palácio das Esmeraldas. 

Por ser urbanista e arquiteta, dói ainda mais ver o patrimônio tombado de Goiânia ruir?

Eu vejo que Goiânia está passando por uma oportunidade de valorização ímpar. O conjunto Art Déco tem que ser restaurado assim como outros componentes históricos, mas acredito que agora temos de aproveitar o momento de atenção internacional. O Brasil vai acolher a Cop-30 e, dentro dessas bases que nós temos de Goiânia, vale ressaltar e destacar a referência histórica da cidade, que nasceu como símbolo ambiental do Art déco e que agrega várias vertentes.

Goiânia é uma cidade caracterizada como eco civilizadora. Com essa chancela, mesmo com todos esses problemas, nós estamos no coração do Brasil, e isso faz da nossa cidade uma urbes única, que tem de ser exposta como uma possível plataforma para as discussões ambientais.

Goiânia não nasceu aleatoriamente. Sua característica maior, que nós temos de comunicar ao mundo, é de que essa cidade eco civilizadora foi planejada e nasceu em um contexto, é isso que vai chamar a atenção do mundo para a nossa cidade.

Narcisa Cordeiro: “Somos o exemplo perfeito do que a China pretende fazer com suas cidades” | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Além da Cop-30 e do centenário do movimento Art Déco, de que forma Goiânia pode atrair atenção do mundo?

Somos o exemplo perfeito do que a China pretende fazer com suas cidades. A China já está trabalhando dentro desse conceito, que seria um equilíbrio entre a vocação ocidental com oriental. O país quer desdobrar essas referências de cidade eco civilizadoras, em intercâmbio da ecologia com o ser humano.

Vivemos um período de valorização dos princípios que guiaram a fundação de Goiânia. Eu tenho estudos que demonstram as diretrizes atuais da China, que busca exatamente o reencontro do país e sua sociedade com a  ecocivilização. Pode parecer contraditório — a China avançou muito em tecnologia, nessa coisa dos arranha-céus e tudo mais — mas há esforço para compensar o ônus ambiental e desenvolver a convivência ecológica.

Temos a chance de reaparelhar Goiânia, de guiar o debate, de ultrapassar a fama de cidade sertaneja. Hoje, a definição de meio-ambiente hoje ultrapassa a parte natural; a contribuição cultural também integra o meio-ambiente. Em Goiânia, o meio-ambiente, como se entende hoje, seria formado por parques e bosques, mas também pela cultura do Art Déco e pela infraestrutura. É essa interação que vai trazer soluções para os problemas atuais de Goiânia.

O patrimônio Art Déco de Goiânia, agregado à questão do urbanismo planeado, sempre foi considerado algo muito avançado pra década de 1930. É esta plataforma que ainda hoje dá à capital de Goiás a chancela de ser um marco eco civilizatório. E é isso que vai permitir que Goiânia se posicione no Brasil como um marco civilizador e ambiental. Essa era, inclusive, a pretensão, dos arquitetos que inventaram a cidade. Agache, Armando, Atilio, todos eles queriam que Goiânia fosse realmente uma referência aqui no centro do país. Temos de buscar novamente esse reconhecimento, porque a cidade nasceu para isso.

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