O espelho trincado da herança: Notas sobre a realidade, a forma e o fisco

Por Luiz Antonio Costa de Santana*

Numa dessas manhãs em que o noticiário tributário se assemelha mais à literatura de Kafka do que à aridez esperada de um Diário Oficial, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em seu mais recente exercício de hermenêutica fiscal, que a herança não se transmite apenas com luto, mas também com valor de mercado. Não o valor da memória, tampouco o da prudência contábil, mas aquele outro, fluido, volátil e cotado segundo a mais impiedosa cotação da realidade: o preço.

No julgamento do Recurso Especial 2.139.412/MT, sepultou-se a tênue distinção entre o valor patrimonial e o valor venal. O herdeiro, que antes recebia quotas sociais como se recebesse o retrato do avô, agora é tributado como se herdasse um shopping center. Para o Superior Tribunal de Justiça, não importa o que o contrato social diz, nem o que os livros contábeis registram. Interessa, isso sim, o que a realidade “revela”, mesmo que a realidade, como as obras de arte, diga mais sobre quem a interpreta do que sobre o objeto em si.

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Trata-se de um retorno à metafísica fiscal: um tribunal que olha através das formas jurídicas e vê, ou pensa ver, a essência econômica. É o velho embate entre a forma e a substância, entre a res pública e o simulacro da contabilidade. Para o contribuinte, resta a sensação de que o planejamento patrimonial é uma peça de teatro onde o roteiro muda durante o espetáculo, e o ator, coitado, só descobre que foi punido depois do aplauso.

Mas vejamos: ao ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, aquela velha cláusula pétrea do Direito Societário, o Superior Tribunal de Justiça parece propor uma teologia fiscal segundo a qual o herdeiro não herda mais a empresa, mas sim os tijolos, o concreto, o IPTU. Como se, em vez de quotas, herdasse maquinário e pedreiro. É como se o testamento dissesse: “deixo ao meu filho, não minha empresa, mas a laje do terceiro andar.”

A jurisprudência nasce, assim, como um Minotauro legislativo: meio norma, meio oráculo. O fisco, que já era onipresente, torna-se agora também hermeneuta. E o contribuinte, nesse novo teatro da tributação, é um personagem que, como Josef K., acorda um dia e descobre que está sendo processado.

Talvez, como dizia Borges, “a realidade não é apenas estranha, é também injusta”. E se há algo de profundamente injusto nesta decisão do Superior Tribunal de Justiça, é o retrovisor em que ela se espelha: uma tentativa de corrigir, via jurisprudência, o que a legislação não ousou prever. Uma forma de dizer, com toga e acórdão, que os planejadores patrimoniais não são engenheiros da prudência, mas arquitetos da fraude.

Na Europa, de onde herdamos tanto a tradição civilista quanto a elegância do ceticismo jurídico, não se tributa o invisível. Na Alemanha, na França e até nos Estados Unidos, o templo da pragmática tributária, não se confunde herdeiro com incorporador. O valor das quotas é o que se transmite. O ativo subjacente é um eco longínquo, jamais o protagonista da cena fiscal.

Mas aqui, na pátria da forma sem substância e da norma sem previsibilidade, seguimos testando os limites da razoabilidade. A decisão do STJ não anula o planejamento patrimonial, mas o reconfigura sob o signo do medo. Daqui em diante, será necessário planejar como se se redigisse um tratado de metafísica: um olho na lei, outro na jurisprudência, e um terceiro, se possível, no oráculo do próximo julgamento do imprevisível sistema judiciário brasileiro.

Porque, como nos lembrava o velho Aristóteles, “a justiça sem prudência é a força do tolo”. E tolo, neste caso, é quem pensa que no Brasil a sucessão é apenas um ato familiar. Não: é uma peça fiscal, um ritual contábil, e agora, um litígio potencial. E o espelho da herança, antes reflexo da memória, está trincado: nele se vê, cada vez mais, o vulto do fisco.

MS.C, Ph.D.; Professor da UNEB e da Univasf; Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/Petrolina*

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