Esta frase foi dita por um menino de seis anos ao pai, que é um amigo das antigas. Sumimos por mudança de local de trabalho, mas nossa amizade continua. Os dois estavam diante da televisão, na qual era veiculada uma matéria sobre alguns desembargadores envolvidos na venda de sentença. Na matéria, conforme o relato do meu amigo, foram mostradas algumas caixas com dinheiro na casa de um desembargador. O menino, óbvio, não são sabia do que se tratava de venda de sentença, mas o tanto de dinheiro mostrado o fez entender que ser desembargador é algo bom, significa abundância de grana. Disso certamente resultou o desejo que externou ao pai.
Esse amigo contou que não teve como apresentar um argumento para dissuadir o filho de seu desejo de ser desembargador. Não encontrou as palavras certas. Fez de conta que não escutou direito, se limitando a uma frase superficial: “Que coisa boa, meu filho, mas tem de estudar”. O fato de eu trazer aqui esse relato tem a ver com a notícia sobre a prisão do ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará Carlos Rodrigues Feitosa. Essa notícia apareceu na timeline do meu Facebook.
Dei um Google. Batata! Enfim mais um em cana. Predomina na grande maioria dos casos, a tal da aposentadoria compulsória, que nem sempre se conclui pela demissão. São recursos e mais recursos. E muitos, por serem insetos grandes, acabam escapando das teias da lei… Conforme a matéria, o magistrado vendia alvará de soltura de bandidos por R$ 150 mil. Coisa abominável! Enquanto os policiais, com salário bem menor, colocavam sua vida em risco para prender bandidos, o excelentíssimo magistrado, no conforto de seu gabinete, engordava a algibeira, abrindo a porta do xilindró para os bandidos.

Algum tempo atrás, aconteceu um caso mais cabeludo. Em 2006, Nicolau dos Santos Neto — ex-juiz do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo — meteu a mão na cumbuca com gosto de gás: foi condenado em três processos que envolviam o desvio de R$ 170 milhões. É grana para pelar porco (e com cédula de 200 reais, que, para mim, é igual a caviar). Isso lhe foi chumbo grosso: pegou cadeia, foi expulso da magistratura, teve de devolver dinheiro. A maracutaia acabou lhe rendendo o apelido de “lalau”, gíria extraída do seu próprio nome. Lalau é sinônimo de ladrão. E a palavra é antiga: já estava presente na primeira edição do Dicionário Aurélio, de 1975. Em maio de 2020, a vida pôs um ponto-final em sua vida: morreu aos 91 anos supostamente por covid. Enfim, maracutaias não faltam em todas as esferas de pod(r)er.
Essa mutreta dos ex-senhores da toga me trouxe à memória um capítulo do livro “Educação de um Príncipe Cristão”, do humanista holandês Erasmo de Roterdã, cuja publicação se deu em 1516, três anos após Nicolau Maquiavel escrever “O Príncipe”, cuja publicação ocorreu postumamente, em 1532: cinco anos após a morte do autor. O capítulo se chama “Os magistrados e seus deveres”.
Ambas obras são constituídas de conselhos a governantes. Enquanto Maquiavel direcionou os seus ao governante que tomou o poder assim instruí-lo a permanecer, Roterdã lança os seus às monarquias hereditárias, de modo “a assegurar que as pessoas nascidas para governar sejam educadas para governar com justiça e benevolência”. Roterdã não é maquiavélico, nem aconselha o governante a ser temido em vez de amado. (O ex-prefeito Rogério, coitado, preferiu ser amado a temido e assim de suserano passou a vassalo.)
Os conselhos de Roterdã buscam apontar ao governante “a necessidade de uma conduta virtuosa em todas as situações”. Diz ele: “Há costumes ruins a serem compensados por leis boas, leis corrompidas a serem emendadas e leis ruins a serem revogadas, magistrados honestos a serem procurados e magistrados corruptos a serem punidos ou controlados”. Conta que, num estado bem ordenado, um número pequeno de leis é o suficiente, mas destaca a necessidade de haver um bom príncipe e magistrados honestos. Sem estes dois, segundo ele, “nenhuma quantidade de leis será suficiente”.
Os magistrados que não honram a toga, que se valem dela para se enriquecer, não escapam das críticas de Roterdã: “Não há nada mais prejudicial do que magistrados começarem a extrair lucros da condenação dos cidadãos”. E há também a prejudicialidade dos que comercializam a não-punição (leia-se venda de sentença, como mencionado anteriormente). Segundo ele, o dever dos magistrados é “proteger a todos: ricos ou pobres, nobres ou humildes, servos ou livres, autoridades públicas ou cidadãos comuns”. Em seu entendimento, a proteção deve ser redobrada para com os pobres, “porque a posição dos homens humildes os expõe mais facilmente ao perigo”. Neste aspecto da desproteção do estado, vale lembrar a quantidade enorme de pessoas pobres e honestas sendo assassinadas por ações policiais destrambelhadas, realizadas com os neurônios da cabeça do dedo indicador colado no gatilho das armas. Não se vê notícia de gente rica sendo assassinada.
Roterdã salienta a importância dos magistrados como geradores de felicidade, no entanto se declara favorável à punição rigorosa dos que pisam na bola: “Logo, a felicidade do estado depende particularmente de seus magistrados serem nomeados de forma imparcial e desempenharem suas funções de modo imparcial. (…) Finalmente, se forem condenados, contra eles devem ser decretadas as mais rigorosas punições”.
Felizmente, o joio é ínfimo no mundo da judicatura.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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