Atlas apresenta mapas intelectuais e artísticos de Jorge Luis Borges

Edmar Monteiro Filho

Penso na metáfora que apresenta o mundo como um vasto livro, sendo nossos sentidos e nossa mente os meios de decifrá-lo. Cada indivíduo estabelece um foco a partir do qual efetua sua leitura do mundo e é com base nessa constatação que podemos concluir pela infinidade de universos possíveis. Se, por um lado, podemos pensar numa solidão inconciliável de cada ser humano, preso à singularidade de sua interpretação, podemos também imaginar possibilidades de expansão constante de nosso universo pessoal, chances de tornar mais complexa e fascinante a leitura que fazemos do livro da vida, desde que estejamos prontos a aceitar novas formas de enxergar.

Escolho agora dois extremos para refletir acerca dessa metáfora. Num deles, estão o entendimento e o raciocínio como meios de “ler” o mundo. No outro, mais literal, o sentido da visão, meio riquíssimo para compreender a “caligrafia” da natureza. Para contemplar ambos, utilizo como ferramenta as ideias do escritor argentino Jorge Luis Borges, expressas no livro “Atlas” (Companhia das Letras, 144 páginas, tradução de Heloisa Jahn), o último que publicou em vida.

Fazendo jus ao seu título, “Atlas” contém um conjunto de mapas. Mas Borges dá a seu atlas o sentido de um catálogo de impressões das viagens que realizou em seus últimos anos de vida, ao lado da secretária e posteriormente esposa e herdeira de sua obra, María Kodama. Vítima de uma cegueira progressiva que o privou completamente da visão por volta dos cinquenta anos de idade, o escritor desenvolveu uma prodigiosa memória como forma de se preparar para a escuridão inevitável. Assim, as notas, poemas, reflexões e narrativas que compõem o livro são viagens intelectuais que se somam às recordações de outras viagens, realizadas na juventude. Como contraponto a esses retratos de cenas e lugares que Borges já não pode ver, “Atlas” traz imagens capturadas pela câmera fotográfica de Kodama.

Uma viagem a bordo de um balão, na Califórnia; o peso da pata de um tigre sobre seus ombros, em Luján; a presença palpável da guerra nas pedras de Colônia do Sacramento; os sons do mar numa praia na Islândia; o sabor de um brioche numa boulangerie, em Genebra: as imagens incrivelmente lúcidas, nítidas, criadas por Borges, fazem experimentar a mesma sensação descrita por Maria Kodama, que dizia muitas vezes sentir-se cega ao seu lado. O próprio escritor, ao refletir acerca daquilo que possivelmente perdera por obra de sua deficiência, afirmou: “Quem se conhece melhor que um cego?”

María Kodama lê para Jorge Luis Borges | Foto: Reprodução

No pequeno texto “Graves em Deyá”, Borges descreve sua visita ao poeta, romancista e crítico britânico Robert Graves, em Mallorca, já velho e bastante doente. Segundo o escritor, ainda que o corpo do amigo siga “cumprindo com seus deveres”, “sua alma está sozinha”, uma vez que Graves não ouve, não fala, não vê. Borges menciona que, enquanto a mulher lhe dá de comer, rodeados ambos por filhos, netos e admiradores de todas as partes do mundo, Graves ignora o tempo, elaborando pacientemente sua secreta morte. Penso nos portadores de tantos males que privam o cérebro da compreensão das informações que recebem dos sentidos: sons, imagens, sabores, o toque do vento ou o calor do sol sobre a pele, tanto que se perde e se estraga às portas do entendimento, barrado por uma leitura impossível, tantas almas que vão se isolando em suas caminhadas rumo ao desconhecido. E penso na alma de Borges, povoada de autores, lugares, datas, aromas, sensações diversas, amontoando imagens por trás de seus olhos vazios.

“Atlas” apresenta alguns dos mapas intelectuais e artísticos de Borges. Seguindo-os é possível percorrer os locais mais visitados pelo escritor em suas reflexões, como o labirinto, o tempo, a arte, o mar, a literatura, a guerra, o sonho. Ao lado desses mapas, as paisagens pintadas pelo olhar de Kodama, nas quais um velho escritor cego aparece com frequência, impecável em seus ternos escuros, apoiado em sua bengala, lendo o mundo com uma intensidade que parece superar tudo o que somos capazes com nossos olhos cheios de luzes e nossas mentes repletas de informações. No texto “O deserto”, o escritor caminha próximo às pirâmides do Egito. Em dado momento, abaixa-se e apanha um punhado de areia, que deixa cair alguns metros adiante. Então, sentencia: “Estou modificando o Saara.” 

Edmar Monteiro Filho, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.

[E-mail: [email protected]]

O post Atlas apresenta mapas intelectuais e artísticos de Jorge Luis Borges apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.