Por Flávio Chaves*
Há amores que chegam sem dizer nada, sem fazer barulho, sem trazer flores nas mãos ou certezas no bolso. Amores que não vêm pela porta da frente, mas pelos fundos da alma, atravessando o terreno baldio das memórias, das saudades antigas, das cicatrizes abertas como janelas que nunca mais conseguimos fechar.
E quando eles chegam, não anunciam: apenas se instalam. Não pedem, ocupam. Não explicam, invadem. Não acendem a luz — deixam que o escuro diga tudo. E é ali, justamente ali, no lugar onde o medo cochila e a esperança respira devagar, que a pele começa a escutar o que os olhos não veem, o que a mente não entende, o que o corpo sente antes de qualquer tradução racional.
O amor verdadeiro não chega com a luz dos refletores. Ele prefere o escuro dos bastidores, o ranger das tábuas do palco vazio, o silêncio das cortinas antes de se abrirem. Ele vem quando tudo parece indecifrável, quando já desistimos de entender o que sentimos, e apenas sentimos. Ele se apresenta tremendo, suando, cheio de dúvida no olhar e tropeçando nos próprios passos — e ainda assim, ficamos. Não por coragem, mas por um chamado que vem de dentro, como se algo muito antigo e muito íntimo dissesse: fica. E ficamos.
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Há quem diga que amor bom é aquele que ilumina, que guia, que mostra o caminho. Mas eu desconfio. Os amores que mais nos transformam são os que nos levam para dentro de grutas. São os que nos obrigam a caminhar tateando paredes, tropeçando em pedras invisíveis, ouvindo goteiras internas, enfrentando nossos monstros escondidos em quartos de infância. São os que nos pedem entrega sem mapa, salto sem rede, permanência sem garantias. São os que nos colocam diante de um rosto que não sabemos descrever, mas que nunca mais conseguimos esquecer. Um rosto que é espelho do nosso próprio avesso. Um rosto que nos reconhece como somos, e ainda assim permanece.
Não há nada mais perigoso do que amar no escuro. Mas também não há nada mais verdadeiro. Porque ali, onde não vemos, sentimos com mais força. Com os dedos. Com a respiração. Com o silêncio. Com os sustos. Com a memória. É nesse escuro que tudo se intensifica. Que o beijo dura mais. Que o abraço diz mais. Que a ausência dói mais. Que a presença cura mais.
O amor verdadeiro não precisa de holofote. Precisa de presença. De coragem. De entrega. De um corpo que treme, mas não recua. De uma alma que sabe que pode doer — e mesmo assim aceita. Porque sabe que há algo naquele toque, naquela voz, naquele gesto, que nenhuma luz seria capaz de revelar.
E talvez seja isso o amor: esse rosto no escuro que nos chama sem prometer nada, mas nos oferece tudo. Essa força que não grita, mas nos cala. Essa vertigem que não nos derruba — apenas nos desarma. Esse susto que, por alguma razão misteriosa, a gente não quer evitar. Esse silêncio que nos ouve por inteiro. Esse abraço que acontece antes mesmo do corpo. Esse olhar que não vemos, mas sentimos dentro do peito. Esse risco que a gente corre com a alma nua. Essa luz que nasce sem precisar acender nada — porque a gente já está inteiro em combustão por dentro.
Não, o amor verdadeiro não precisa de claridade. Precisa apenas de uma verdade íntima, bruta e doce, que diga baixinho: eu te sinto. E um corpo — ainda que trêmulo, ainda que cego — que diga de volta: eu fico.
*Jornalista, poeta e escritor
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