
A luta por memória, verdade e justiça em relação aos mortos e desaparecidos da ditadura ganhou novo impulso nos últimos tempos, com a volta das forças democráticas e populares ao centro do poder e com a projeção que o tema ganhou na sociedade com o filme “Ainda estou aqui”. Em meio a esse novo cenário, o PCdoB decidiu formar sua Comissão de Memória e Justiça.
A instância foi criada como forma de viabilizar ações concretas, junto ao governo, instituições e movimentos envolvidos com o tema, de maneira a contribuir tanto para buscar justiça e tornar os crimes da ditadura mais conhecidos da população como para, em especial, encontrar e entregar aos familiares os restos mortais daqueles que tombaram frente à perseguição do Estado autoritário que vigorou de 1964 a 1985.
“O PCdoB já tem uma Comissão Nacional de Direitos Humanos, coordenada por Liege Rocha. Mas, sentimos a necessidade de contar com um coletivo voltado especificamente para o acompanhamento de todas as questões relacionadas aos membros do Partido que lutaram contra a ditadura militar e são considerados pelo Estado brasileiro como mortos ou desaparecidos”, explica Nádia Campeão, secretária de Organização do partido e que acompanha o trabalho da Comissão.
“Para nós, esses comunistas foram exemplo de uma resistência heróica na luta por liberdades e pelos direitos do povo brasileiro. Manter viva e presente sua memória, exigir identificação das circunstâncias de suas mortes e a condenação dos responsáveis é uma tarefa honrosa da atual geração de militantes comunistas”, completa.
A Comissão é formada por familiares de mortos e desaparecidos, bem como estudiosos e juristas especializados nesse tema e dirigentes do PCdoB. A coordenação ficou a cargo do ex-deputado Raul Carrion, dirigente do partido no Rio Grande do Sul, que foi preso e torturado naqueles anos.
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“A criação pelo Comitê Central do PCdoB da Comissão Memória e Justiça cumpre um importante papel na unificação das inúmeras iniciativas que vários camaradas vêm desenvolvendo ao longo dos anos, na busca por manter viva a memória dos heróis do povo brasileiro, mortos na luta contra a ditadura militar, seja nas selvas do Araguaia ou em outras áreas de guerrilha, seja nos grandes centros urbanos do país”, explica Carrion.
Entre as primeiras ações da CMJ do PCdoB está levantar informações mais atuais sobre a situação das ossadas já encontradas e cobrar a retomada das buscas por outras, bem como identificá-las e entregá-las aos familiares. Nesse sentido, está trabalhando na articulação, junto ao governo federal e demais órgãos envolvidos, para dar continuidade e agilizar esses processos.
Para viabilizar essas ações, Carrion ressalta que o poder público precisa disponibilizar os recursos necessários, da mesma forma como deve “punir os responsáveis por esses crimes de lesa-humanidade”.
Vale destacar que, no caso do Araguaia, duas decisões respaldam as cobranças feitas pelo partido e pelos familiares: a sentença de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Gomes Lund), bem como determinação anterior da 1ª Vara Federal do Distrito Federal, em 2003.
Mortos e desaparecidos
O PCdoB foi um dos partidos políticos que mais perderam militantes e dirigentes durante a ditadura, 79 de um total de 434, conforme levantamento feito pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania a partir de informações colhidas pela Comissão Nacional da Verdade. Somente na Guerrilha do Araguaia — que completa 53 anos no próximo dia 12 — cerca de 70 militantes e camponeses foram assassinados.
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Desses militantes, apenas dois tiveram seus restos mortais identificados e entregues às suas famílias: Bergson Gurjão e Maria Lúcia Petit. Mais de 20 outras ossadas foram resgatadas na região do Araguaia, mas não foram analisadas, de maneira que não é possível afirmar que sejam de membros do grupo. A maioria delas está na Universidade de Brasília.
Soma-se a esse conjunto de vítimas os militantes do MR8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro) — que mais tarde foi a principal base de formação do Partido Pátria Livre (PPL), incorporado ao PCdoB em 2018. Conforme o relatório final da CNV, a organização também figura entre uma das que mais perderam militantes para a violência ditatorial, correspondendo a 5% do total de vítimas oficialmente reconhecidas como mortas e desaparecidas.
Novo contexto
A busca por verdade, memória e justiça em relação aos mortos da ditadura é uma luta antiga dos familiares e organizações políticas e sociais, que começou em meio ao processo da transição democrática.
As limitações trazidas por brechas no texto da Lei de Anistia de 1979 e a falta de um processo de justiça de transição — que possibilitasse, entre outras coisas, a punição dos responsáveis, a expulsão desses agentes do serviço público e a mudança da formação militar a partir de uma visão democrática e de respeito aos direitos humanos — fizeram com que o país, até hoje, não tenha saldado a dívida histórica e social contraída durante o regime.
Ao longo das últimas décadas, houve avanços e recuos. Dentre os pontos positivos, destacam-se a criação e o trabalho das comissões de Mortos e Desaparecidos, de Anistia e da Verdade, bem como sentenças judiciais em âmbito nacional e internacional em favor da punição dos responsáveis e do Estado. Porém, o país ainda está muito aquém do necessário para fechar esse capítulo da história.
A partir do golpe de 2016, quando a presidenta Dilma Rousseff foi retirada do poder, o país enfrentou uma série de retrocessos, inclusive nessa seara. A chegada de Jair Bolsonaro ao poder foi uma “pá de cal” nessa luta. Defensor ferrenho da ditadura e dos torturadores, o ex-presidente inviabilizou o trabalho das comissões de Mortos e Desaparecidos — que acabou sendo extinta — e da Anistia — que foi descaracterizada.
A volta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder em 2023 fez com que essas instâncias fossem retomadas, mas limitações orçamentárias ainda dificultam seu funcionamento pleno.
Outros pontos positivos trazidos por esse novo cenário nacional foram posicionamentos recentes adotados por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
No final de 2024, o ministro Flávio Dino defendeu a releitura do alcance da Lei de Anistia — que foi considerada constitucional pela Corte em 2010. De acordo com seu entendimento, crimes como os de desaparecimento e ocultação de cadáver devem ser considerados “crimes continuados” enquanto o paradeiro dos corpos permanecer desconhecido, de maneira que não podem ser abarcados pela Lei da Anistia, que delimitava um marco temporal dos crimes.
Além disso, em fevereiro, o ministro Edson Fachin determinou a tramitação de mais dois recursos referentes à tortura e morte de Carlos Danielli (em 1972), dirigente do PCdoB, e do operário Joaquim Alencar Seixas (em 1971).
Outro fator que fortalece essa luta é o posicionamento adotado pelo relator da ONU para a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Bernard Duhaime. Após visita ao Brasil, finalizada nesta segunda-feira (7), ele declarou que a Lei de Anistia de 1979 é incompatível com o ordenamento internacional de direitos humanos e sugeriu que a mesma fosse revista ainda neste ano.
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